Desde 2003 tenho escutado muito falar em José Cândido de Carvalho, autor de O Coronel e o Lobisomem. Deve-se essa exumação do nome à sorte que o destino tem traçado para mim. Em primeiro lugar, casei-me com um campista, ex-cidadão de Campos dos Goytacazes, cidade de José Cândido. Parece-me que por lá todo aspirante a escritor tem no criador do coronel Ponciano uma espécie de deus olímpico. Dizia meu marido que Campus tem lá poucas referências. A única literária teria sido o dono do volumoso O Coronel e o Lobisomem.
Sempre que se fala em Campos, interior do estado do Rio, alguém levanta as sobrancelhas e lembra da bacia ou da Petrobrás. Petróleo, terra de dinheiro. Engraçado que quando visitei a cidade, fiquei pensando que o dinheiro deve escoar direto dos poços para os bolsos dos felizardos. Não houve vista de riqueza assim tão desbragada em nenhum lugar para onde eu tenha olhado. Para a cultura, então, muito menos.
Também quando se fala em Campos, há quem se sacuda para dizer que é a maior cidade do interior do Rio. Campista não é carioca, alerta meu marido aos mineiros mais conservadores. A fama de malandro não lhe cai bem, então ele dá aula de patronímicos em português: campista é fluminense. Carioca é quem mora na cidade do Rio.
O assunto é controverso, já que os arredores da Cidade Maravilhosa se acham cariocas, assim como muitos dos que nascem em Juiz de Fora. Também é previdente alertar que fluminense é que nasce no interior do estado, e não apenas o time de futebol, que é bem mais conhecido.
E José Cândido de Carvalho, autor campista, caiu no vestibular. A expressão "cair no vestibular" é precisa. Para alguns, isso é motivo de alegria. Pode ser a única chance de vender bem um livro. Há quem consiga essa proeza em vida. Há quem deixe a felicidade para os parentes de gerações adiante, gente que não fez nada para merecer a grana que caiu do céu porque um tio-avô era escritor. Algumas famílias cobram de 500 a 1000 reais para que se publique um único texto. Ah, eu também queria ter parentes famosos nesta era do direito do autor.
Para outros, "cair no vestibular" é uma arapuca para pegar bobo. Para quem já morreu, o máximo que pode acontecer é o editor ter que reeditar livro já esgotado, pagar uma mixaria para herdeiros sem noção e ver as legiões de estudantes (mais sem noção ainda) comprando o livro para fazer prova. Isso para aqueles que são mais cuidadosos, porque quem vende mesmo é professor de cursinho que escreve ensaios do tipo "o que o autor quis dizer" e vira best-seller.
Uma terceira maneira de enxergar o "caimento" é verificar que os sebos se enchem de livros novos depois que passam as provas. Com José Cândido não foi diferente. Visite-se um sebo belo-horizontino e estarão lá as edições mais recentes do Coronel. O que não é de todo mal para quem gosta de literatura, que pode conseguir o volume bem mais barato do que nas livrarias.
Mais uma: "cair no vestibular", para escritor vivo, pode ser uma confusão imensa. São comuns as histórias de quem já teve a experiência de ser convidado para dar palestra em cursinho. Chegando lá, depara com um delírio em horas/aula de alunos e professores fanáticos pela superinterpretação. Dá que o autor cai na bobagem de fazer a prova sobre o próprio livro e toma bomba. Reza a lenda que isso teria acontecido com Roberto Drummond, quando Hilda Furacão virou best-seller. E também com Ignácio de Loyola Brandão, quando Não verás país nenhum esteve na lista das universidades.
José Cândido agora ganhou status de autor-que-virou-cinema. O filme, com estética e produção globais, deu ao Coronel Ponciano e ao agregado Nogueira os rostos de, respectivamente, Diogo Vilela e Selton Melo. No caso do primeiro, a escolha ainda se justifica. Apesar da cansativa narrativa com voz de ogro, Vilela faz cara de doido e tudo. Mas no caso de Selton, dificílimo convencer algum espectador com aquela voz de novela das seis e aquele jeito de menino-que-não-envelhece-nunca.
Ana Paula Arósio faz bem a cena da moça de época. Para a decepção de muitos, o filme não teve sequer uma ceninha na cidade de Campos. O centro de Belo Horizonte é que aparece nas cenas urbanas, coisa que, aliás, enfureceu parcela dos belo-horizontinos, que não estão acostumados a enfrentar engarrafamento por causa de gravação de novela. Os motivos costumam ser bem outros.
Está lá, O Coronel e o Lobisomem, para quem já fez vestibular e para quem quer entretenimento despretensioso. Para quem gosta de literatura, é interessante assistir ao longa para conhecer a linguagem do livro, já que foi transplantada, em grande parte, para a tela, no português preciso e bem-arranjado do autor campista.
Literatura é...
Certa vez um aluno pequeno me disse que literatura parecia o nome da bisavó dele. Achei aquilo bonito. Não entrei em detalhes, mas imaginei uma bisavó como a minha: esguia, elegante, bem-penteada e velha, bem velha. Os cabelos brancos, muito brancos, pelas espáduas, como diria Caminha, e um olhar que parecia já ter nascido com ela, assim como a idade e os cabelos imensamente brancos.
Alimentei por muito tempo a mesma idéia do menino. A de que a literatura era uma espécie de arte morta, dessas que só são feitas por gente condenada. Todo escritor estava morto, assim como suas obras sempre pareciam empoeiradas nas estantes das bibliotecas. Os livros vendidos em lojas eram como mercadorias encalhadas em armazéns de luxo.
Até que um dia deparei com um poema de Leminski, aquele quase oriental curitibano que tocava notas curtas com os dedos. Não gostei do modelo de bigode que usava e nem da pose de agressor, mas fiquei imensamente apaixonada pelas rimas que ele assobiava. Pareciam, todas elas, ter saído de uma gaita fácil. Pensei até que eu mesma pudesse tocar um instrumento assim.
Depois disso, descobri uns escritores vivos. Seus livros também pareciam vivos. Sua literatura era a expressão de que o mundo poderia ser contemporâneo a essa arte de palavras. Dali em diante passei a cultivar os livros de quem respirava fundo todos os dias.
O primeiro escritor vivo que conheci de perto deve ter sido Marçal Aquino. Deve ter sido. Na mesma mesa de bar estavam outros. Também Carlos Herculano Lopes, que eu admirara na adolescência, aparecia piscando pelas esquinas da capital mineira. A literatura ganhara, para mim, um golpe de vida.
Há pouco tempo um aluno mais velho me disse que literatura era alguma coisa da ordem do impossível. Também outro aluno me disse que literatura era uma espécie de plástica que os insanos faziam na linguagem, para parecer que ela não serve para nada.
Nova literatura
Mas acontece que essa vida literária é muito cansativa, e eu já estava quieta, quando conheci o livro de Elisa Andrade Buzzo, uma paulista que caiu do céu na minha caixa de e-mails e enviou um livro de poemas, lançado pela 7lettras, do Rio. Não é que a poesia ótima da autora me tenha surpreendido, não. Mas é que havia tempos que eu não lia um livro gostando tanto.
O volume bem-cuidado se chama Se lá no sol, pela coleção Guizos. A moça tem esse assobio leve de que tratam os poetas mais distraídos. São também esses que levam a poesia adiante, sem marteladas.
Em breve, muito breve, trarei aqui outros comentários sobre livros da estante nova. Renato Negrão também me deixou um volume vermelho. Rosângela Vieira Rocha me deixou suas Pupilas ovais. Mas vou devagar. E longe.