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Sexta-feira,
25/11/2005
Sopro de haicai em Flauta de Vento
Marcelo Spalding
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Quando, no século XVII, Matsuo Bashô formalizou um gênero poético, lá no outro lado do mundo, não poderia imaginar a repercussão que este teria no Brasil pós-moderno, no Brasil da internet, no Brasil da natureza exuberante. O haicai, como é conhecido pelos ocidentais, desembarcou na terra de Macunaíma em 1936 com o poeta Guilherme de Almeida, e de lá para cá viveu momentos diversos, ganhou rima, perdeu rima, ganhou título, perdeu título, movimentou polêmicas acerca de sua forma, dividiu correntes, alçou escritores aos cânones líricos e, quem diria, chega no pós-2000 com uma vitalidade impressionante (no mundo de papel editoras como a Ame o Poema estão empenhadas na propagação do gênero, e no ciberespaço tais iniciativas se multiplicam - visite, por exemplo, este site.)
É natural, diante de movimento tão intenso, que em terra brasilis o haicai tenha se transformado e assumido formas diversas, tanto estéticas quanto semânticas, dificultando inclusive sua definição. E ainda é mais natural que haja um movimento contrário a este, firme na defesa do tradicional haicai japonês. Para esta tendência, seguida especialmente por imigrantes japoneses, haicai é um poema de três versos, escrito em linguagem simples, sem rima, com dezessete sílabas poéticas (sendo cinco no primeiro verso, sete no segundo e cinco no terceiro), e com uma referência a natureza expressa por uma palavra (o chamado kigô), que deve representar também a estação do ano.
Parece impossível criar um, sequer um bom poema com significação, aliterações e jogos de palavras dentro deste modelo? Pois Teruko Oda criou mais de cem, e o resultado é o delicado Flauta de Vento (Escrituras, 2005, 112 págs.), um livro para ser lido numa tarde de sol, deitado na grama de um parque, ou em voz alta para os filhos, antes de dormirem.
Os 128 haicais foram distribuídos a partir de temas, que normalmente são os próprios kigôs, e estes temas estão apresentados por ordem alfabética e divididos por letra. Fiel a tradição do gênero, os temas remetem a natureza e vão da água-viva à coruja-preta, do frango d'água à lesma, do rato do mato à passarada outonal.
Não é uma ode a natureza, tampouco um manifesto ecológico contra a humanidade, mas uma coleção de momentos, de cenas cotidianas e naturais, no mais objetivo sentido da palavra. O mesmo sujeito poético se refere ao atum como ótimo alimento para acompanhar o bolinho de arroz...
Bolinho de arroz
Coberto com atum fresco -
Um casal perfeito.
... contempla a lagartixa em sua luta pela sobrevivência ...
Requebra, requebra -
A lagartixa sem rabo
fugindo do gato.
... e ameaça o pernilongo que o acorda no meio da noite.
No meio da noite
o pernilongo me acorda
disposto a morrer.
Tudo de forma natural, com linguagem simples e métrica perfeita. Uma pista para entendermos este aparente paradoxo, qual seja a naturalidade com que é tratada a intervenção humana na natureza, é a epígrafe. Aliás, como não poderia deixar de ser, trata-se de um preceito budista: "A vida depende da vida. Todos comemos e somos comidos. Quando nos esquecemos disso, choramos; quando nos recordamos disso, podemos nutrir uns aos outros".
O mais atento estudioso do haicai ou da poesia deve estar contando as sílabas e procurando o kigô dos poemas acima reproduzidos. Porque de fato impressiona que com tantas limitações formais se consiga criar tão diferentes e profundos poemas. Separamos um haicai e dividimos as sílabas poéticas deste:
Chá beneficente -
A borboleta de inverno
sem acompanhante.
Chá | be | ne | fi | cen | te - (5)
A | bor | bo | le | ta | de in | ver | no (7)
sem | a | com | pa | nhan | te. (5)
Note que a palavra inverno é o kigô na forma mais autêntica e clara, a referência direta a estação do ano. E também como a métrica se encaixa na estrutura 5-7-5.
À parte a contemplação dos resultados alcançados por Teruko Oda, vale questionar como e por que o haicai atravessou anos e oceanos, sobrevivendo, enquanto vitalidade, até ao soneto, gênero também formal, mas muito pouco produzido pelos poetas modernos (menos ainda pelos amadores). Na introdução da obra, a própria autora dá algumas pistas:
"Parece-me que a expressão 'tempo é dinheiro' nunca se fez tão verdadeira como nesta sociedade pós-moderna em que vivemos. (...) Somos levados a participar desse clima de competição, engrossando a fileira dos bem-sucedidos portadores de estresse. (...) Paradoxalmente, há uma valorização da qualidade de vida e preocupação com o meio ambiente. (...) Nesse contexto, o haicai se apresenta como solução. Sendo um poema popular, cuja característica principal é a referência a cenas do cotidiano, retratadas através de linguagem simples e objetiva, não é necessário que o praticante seja um profundo conhecedor de teorias da linguagem."
A própria menção do papel do haicai no mundo moderno demonstra uma preocupação da autora em sua permanência enquanto gênero, mas a tentativa de associá-lo a luta ambiental e a sua conveniência num mundo cada vez mais apressado não valoriza em nada o gênero japonês. Muito pelo contrário. A leitura do haicai é veloz, mas a contemplação é lenta. E se de fato a linguagem é simples e objetiva, não é provável que um poeta, mesmo experimentado, encontre facilidade para se expressar em tão poucos versos e em tão rígida métrica. Na tentativa de minimizar sua própria genialidade, a autora atribui ao gênero uma facilidade que ele não oferece nem para o leitor - que precisa ser atento e lúdico - nem para o autor. E aí está a graça do haicai e de todo o formalismo que cerca especialmente a corrente de Teruko: a sua inutilidade, a inutilidade das joaninhas, das asas coloridas das borboletas, dos vaga-lumes presos num vidro de geléia.
Talvez a melhor utilidade para Flauta de Vento seja a possibilidade de usá-lo como ponto de partida para iniciantes em haicai, ou porto seguro para praticantes pós-modernos. Afinal Teruko Oda, se não a melhor haicaista do Brasil - que destes superlativos nem ela nem nós precisamos -, é a que mais nos aproxima do Japão, de Bashô, do budismo. Do espírito original do haicai, quando este ainda não era vento.
Para ir além
Marcelo Spalding
Porto Alegre,
25/11/2005
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