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Quarta-feira,
16/11/2005
Porque crescer não é fácil
Guilherme Conte
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A juventude é um tema constante nas letras. Seja como forma de se auto-examinar e/ou de exorcizar fantasmas, seja de uma ótica externa, mais analítica. A literatura é cheia de ótimos "romances de formação", sempre inquietantes. O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, talvez seja o mais célebre. Nos últimos tempos, um que causou bastante barulho foi Norwegian Wood, de Haruki Murakami, retrato contundente do Japão nos anos 1960/ 70.
No teatro o panorama não é diferente. Vira e mexe aparece alguma peça sobre a adolescência e a passagem para a vida adulta. Muita porcaria, diga-se de passagem: há peças claramente escritas para o próprio autor resolver alguma questão sem pagar um analista. Não é nem de longe o caso da ótima Essa nossa juventude, de Kenneth Lonergan. Dirigida por Laís Bodanzky, com Gustavo Machado, Paulo Vilhena e Silvia Lourenço, ela segue em cartaz no Teatro SESC Anchieta até o dia 18 de dezembro.
"Uma peça adulta para jovens." Assim definiu a atriz Maria Luisa Mendonça, que produziu a montagem assinou a tradução, dividindo ambas as tarefas com Christiane Riera. E é exatamente isso. Um recorte de 48 horas na vida de três jovens - Dennis (Machado), Warren (Vilhena) e Jessica (Lourenço) - em plena Nova York nos idos de 1982. Num universo de drogas, álcool e rock'n'roll, eles são atropelados pela dureza da vida em meio a sua busca frenética por dinheiro e prestígio. O lado b do american way of life.
Nenhum acontecimento espetacular toma corpo nestes dois dias. O território é o apartamento de Dennis. Jovens brigando com os pais ou namoradas, buscando drogas, procurando algum tipo de curtição para espantar o tédio. Mas algo de significativo acontece sim na vida daquelas pessoas. "É um rito de passagem, uma sofrida tomada de consciência. Um clique sutil", aponta a diretora Laís Bodanzky. "Ali eles se percebem sozinhos e sacam que vão ter que enfrentar o mundo." A sensação de que a farra acabou.
O texto tem nesse ponto o mérito de não cair no moralismo ou na doutrinação. Lonergan não trata seus jovens como idiotas, nem sequer ensaia nenhum tipo de julgamento. Os personagens não terminam a peça saindo em busca de emprego, mulher e filhos. Não saem simples pagadores de impostos que não estacionam o carro em lugar proibido. Os caminhos ficam abertos - é só a ficha que caiu. "É uma reflexão importante. A vida pode acabar. Quê que eu fiz até agora?", continua Laís.
A aparente vacuidade daquelas existências gradativamente dá lugar a uma angústia que ressoa em todos nós. Crescer é muito difícil. Cair em si e se perceber sozinho dói. A platéia vai do riso fácil ao constrangido nó na garganta. A passagem é sutil. Sem grandes eventos, definitivamente alguma coisa aconteceu ali. Em todos nós.
Kenneth Lonergan nasceu em Nova York em 1963. Está sempre pulando o muro entre o teatro e o cinema, se dando bem e ganhando prêmios nos dois lados. Ele é mais conhecido por aqui pela telona: são dele os roteiros de Gangues de Nova York, de Martin Scorsese, e Máfia no Divã, de Harold Ramis. Além disso, ele assinou e dirigiu o longa Conte Comigo. Essa nossa juventude estreou em Nova York em 1996, foi remontada em 1998 e em 2001 foi parar no West End, em Londres, meca da dramaturgia contemporânea.
Esse diálogo entre o teatro e o cinema, muito presente na forma de estruturação do texto, é ponto fundamental na montagem. Não foi à toa a escolha de Laís Bodanzky para a direção. Embora com origens nos palcos - estudou atuação e direção com Antunes Filho no CPT - Laís estourou com o filme Bicho de Sete Cabeças, uma porrada bem dada nas clínicas psiquiátricas e em todo o pensamento sobre drogas na sociedade. Essa nossa juventude é sua estréia na direção teatral.
A levada da peça é cinematográfica. "Enquanto ensaiávamos, eu olhava para os atores e via cenas, via o enquadramento da câmera", conta. Doce e sorridente, é rigorosíssima na direção. Seu pulso forte buscou o naturalismo nas cenas, o que tornou as atuações extremamente verossímeis e construiu uma sólida ponte na comunicação com o público. "Quis buscar marcas imperceptíveis, como se estivesse no set, buscando a vida como ela é. Só ia tocar música se um dos personagens fosse até o toca-discos e ligasse a música."
Este diálogo é sempre arriscado. Teatro é teatro e cinema é cinema. Essa conversa pode ser uma simples muleta de um encenador inseguro. Mas a competência de Laís, sua sólida formação teatral e seu olhar sensível não deixam que isso aconteça. Essa nossa juventude é uma peça, não finge ser um filme.
O resultado é ótimo. A grande atuação fica a cargo de Gustavo Machado. Ele é o dono do palco, um verdadeiro trator. Impressiona pela naturalidade e pela transição de estados emocionais. Ora manipulador, opressivo, ora um jovem sozinho, com medo do que vem pela frente, apavorado com a morte. Segurança de atuação e maturidade raras.
Seus colegas não fazem feio. Silvia Lourenço emociona como a garota que quer entrar para turma. Uma "pseudo-descolada", segundo a atriz. É um vai-e-vém entre reações explosivas e uma candura afetuosa. Sua entrada é ótima, cria uma empatia imediata. Já Paulo Vilhena destoa um pouco dos outros dois, embora tenha momentos bons. Ele ainda está entrando no teatro; falta-lhe o traquejo, aquele andar espontâneo pelo palco.
Destaque para o belíssimo cenário de Cássio Amarante e Marcelo Larrea. Nos sentimos de fato dentro do apartamento de Dennis. O figurino de Verônica Julian é convincente e a iluminação de Alessandra Domingues inteligente, também pautada pelo naturalismo. Tudo soa e aparece verdadeiro.
A tradução de Maria Luisa Mendonça e Christiane Riera é excelente. "O texto guarda muitas coloquialidades precisas", apontou Gustavo. "Aparentemente é um blablablá sem fim, mas é dificílimo." Elas contaram com a colaboração de Bráulio Mantovani, roteirista do Bicho, que "sujou" o texto. "Ele botou uns 'caralho!' e uns 'merda' ali no meio, que aproximaram o texto da realidade", sorri Maria Luisa.
Um texto muito bom em uma feliz montagem. É difícil não se identificar ali. Um retrato fiel de uma juventude enfrentando um momento-chave. Emocionante.
Para ir além
Essa nossa juventude - Teatro SESC Anchieta - R. Dr. Vila Nova, 245 - Vila Buarque - (11) 3256-3381 - Quinta à sábado, 21h; domingo, 20h - R$ 10,00 (quinta) e R$ 20,00 (demais dias) - Até 18/12.
Notas
* Uma montagem para agradar os puristas. Se você acha que o que falei aí em cima é bobagem e que para se fazer teatro só o ator é necessário, vá assistir a ótima Daqui a duzentos anos, do Ateliê de Criação Teatral (ACT), de Curitiba, baseada em contos do russo Anton Tchekhov. A direção e a dramaturgia são de Márcio de Abreu (da corajosa Cia. Brasileira de Teatro), e no elenco estão Luís Melo, André Coelho e Janja, com participação de Edith de Camargo. Uma das peças mais festejadas do FIT em São José do Rio Preto, reúne só os atores e algumas cadeiras. O protagonista é a palavra. Seu ofício, a arte de contar histórias. Destaque para o brilhante desempenho de Luís Melo, que apaga os outros dois (embora André seja uma promessa). Preste atenção na beleza das narrativas e na atualidade de Tchekhov. Sábados e domingos, 19h, no Galpão 1 do SESC Belenzinho (R. Álvaro Ramos, 915 / Belenzinho / (11) 6602-3700). R$ 15,00. Até 11/12.
* Olha ele aí de novo: Gerald Thomas reestréia em São Paulo sua falada Um circo de rins e fígados. Poucos dramaturgos dividem tanto as opiniões como Thomas. O time dos que amam e o time dos que odeiam são veementes em suas defesas e costumam aborrecer todos os que tiveram o azar de estar no bar quando o assunto foi levantado. Poucos são indiferentes. Como a maioria dos autores profícuos, Thomas tem coisas boas e ruins. Um circo de rins e fígados é razoável. Marco Nanini, encarnando um homem chamado Marco Nanini, recebe caixas misteriosas de um tal de João Paradeiro, contendo "documentos secretos". A partir daí uma série de acontecimentos se desenrola em ritmo alucinante. O texto, embora inteligente e com algumas boas sacadas, cansa e chega a esbarrar na chatice. E por que ver, então? Pela abissal atuação de Marco Nanini, o maior ator de teatro deste país. Ele faz miséria. Sextas e sábados, 21h; domingos, 19h, no SESC Vila Mariana (R. Pelotas, 141, Vila Mariana / (11) 5080-3000). R$ 30,00. Até 11/12.
* Às vezes chatos, às vezes interessantíssimos, diários são sempre documentos históricos importantes. Primando por serem indevassáveis, são registros íntimos escritos no calor dos acontecimentos. Não só para quem se interessa por teatro, mas pela história do século XX, recomendo o Diário de Trabalho, de Bertolt Brecht, lançado (em três volumes) pela Editora Rocco. Franco e minucioso, constrói o retrato de uma época. Destaque para o segundo volume, que cobre o período de seu auto-exílio nos Estados Unidos, entre 1941 e 1947. Para se ter uma idéia, ele conta sobre seu convívio com gente do calibre de Kurt Weil, Theodor Adorno, Charles Chaplin, Jean Renoir e Orson Welles. Fala sobre a criação da peça O círculo de giz caucasiano. Discute Rilke, Gide e Goethe. Detalhe interessante: está registrado ali o suicídio de Walter Benjamin. Uma ótima maneira de mergulhar no universo deste dramaturgo que mudou os rumos do teatro.
Guilherme Conte
São Paulo,
16/11/2005
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