O estilo "carta" não é muito comum quando se deseja fazer um comentário sobre um livro, com a proposta de informar os leitores do periódico em que é publicado. No entanto, à medida em que eu lia seu Amor em segredo: as histórias infiéis que aprendi com meu pai, Nelson Rodrigues (Agir, 2005, 222 págs.) e refletia sobre seus escritos, ia imaginando uma carta. Deve ser porque o tom do seu texto é extremamente intimista, praticamente uma conversa com quem está do outro lado.
A aba informa que o livro, "a meio caminho entre a memória e a reflexão", está dividido em "capítulos curtos, emocionantes e reveladores". Pois essa combinação de características me fez pensar neste livro como uma espécie de antologia de crônicas. Crônicas sobre o que você pensa do mundo e dos relacionamentos, sobre as histórias da sua família, sobre as teorias que os terapeutas, psicanalistas e psicólogos têm para nossas angústias e comportamentos.
Enfim, não me parecem capítulos. Acho que o único momento em que percebi que poderia se tratar de uma narrativa única foi no último texto, quando você diz "agora estou pronta (.)". Aliás, a declaração de estar "pronta para o amor", para "romper os laços que me prendem ao que é triste, amargo e responsável em excesso", não é "exorcizar esse mar de histórias" (e a aba do seu livro diz que não esse o objetivo)?
Estou abordando esse aspecto das incoerências não porque sejam um crime ou desqualifiquem sua obra, mas porque se realmente fosse uma narrativa, acho que seria uma das não muito boas. Uma história única presume ligação entre os capítulos, relação entre o que se diz antes e o que se diz depois. Percebo, claro, que os temas são recorrentes, que a maneira como você fala das pessoas mais importantes que permeiam essas histórias é a mesma. Mas não existe uma linearidade que caracterize uma história completa - a sua história. Por isso digo que não seria uma boa narrativa.
E enquanto escrevo "não muito boas", me vem à cabeça uma preocupação com este ato de comentar um livro. Em primeiro lugar, porque apesar de já ter escrito sobre vário livros aqui no Digestivo, não sou crítica literária profissional (então eu posso vir a falar muita asneira). Em segundo, porque criticar uma obra de ficção é uma coisa, e criticar as memórias e as histórias de alguém é outra coisa (então posso vir a cometer muitas injustiças).
Bem, podemos dizer que se critica a forma, e não a vida da pessoa. Mas é difícil separar os dois aspectos quando se trata de textos como os seus, Sonia. Uma das coisas que me incomodaram foi a menção constante, quase um mantra, sobre sua filiação. Será que precisaria repetir tantas vezes que você é filha de Nelson Rodrigues? E se o seu livro é dividido em capítulos - não em crônicas - então essa repetição não se justifica. E se forem crônicas - como eu acho que são - o fato de aglutinar vários textos no mesmo livro tem esse risco (o link leva a uma outra coluna em que falo sobre isso), que pode ser minimizado na edição.
E aqui estou eu criticando as várias vezes em que você fala do seu pai, quando o seu reconhecimento como filha dele foi um processo traumático. Eu me solidarizo com você, com a sua luta por crescer e descobrir seu lugar no mundo, mesmo com todas as dificuldades que uma infância conturbada impôs à sua vida. Mas já que a exposição que você fez da sua história pessoal me dá o direito de opinar sobre o que você tornou público, me pergunto: não seria mais valoroso ser reconhecida como a Sonia escritora, jornalista, roteirista, doutora em Literatura, ao invés da Sonia filha do Nelson Rodrigues?
Este último parágrafo é um exemplo da posição complicada de criticar histórias pessoais. Afinal, quem sou eu para dar pitaco na vida dos outros? A princípio, desnudar a alma parece um ato de coragem. Mas quando é muito freqüente, perde o efeito. Se houvesse um pouco mais de parcimônia no uso desse estratagema no livro, acredito que ele teria o tempero certo: o mistério que permanece após o vislumbre pelo buraco da fechadura - que revela só uma parte; ouvir um boato e não ter a certeza - que mantém o segredo.
Esse tipo de exposição pode ter vários significados, alguns muito mais ingênuos ou nobres dos que os que eu vou citar aqui. Um desses significados é a necessidade de chamar a atenção. Outro, é uma manobra para neutralizar críticas. Na medida em que se escancar os insucessos, os comentários alheios perdem seu poder. Mas qual a consequência disso? Para mim, é a sensação de incômodo, de constrangimento e até de ser enganada por uma possível tentativa de oportunismo (não cheguei a uma conclusão se a exposição no seu livro tem algum desses objetivos. A intenção aqui é fazer uma reflexão sobre os casos em que ela acontece).
Em algumas crônicas, me parece que o que o leitor acompanha é um fluxo de consciência. Sabe quando a gente pensa alguma coisa, mas só verbaliza quando o pensamento já está lá na frente? Nesses casos, a pessoa que nos ouve não "pega" o que quisemos dizer, porque ela só teve acesso a uma parte do raciocínio. Parece que você passa para o papel apenas alguns fragmentos, sem dar condições para que o leitor entenda a relação. Não é como o pensamento não-linear ou as elipses, que estimulam o leitor e enriquecem a leitura. É uma falta mesmo, que nos deixa ansiosos para compreender o que você realmente quis dizer.
Eu gosto de subjetividade, e talvez por isso tenha lido Amor em segredo de uma sentada, no último feriadão. Mas à medida em que passava de uma página a outra, crescia em mim um tênue déja-vu, uma sensação que demorei a identificar. Depois de um tempo, descobri: entremeado às suas palavras, ao que você realmente pensa, percebi um intertexto bem característico do divã. Imagino que você tenha feito terapia, ou lido muitos livros de auto-ajuda. Eu fiz terapia e reconheci esse discurso nas suas linhas. Pelo jeito, no que se refere a formas de lidar com frustrações, erros, autocrítica e relação com os homens, existem algumas fórmulas comuns aos consultórios de psicanálise e afins.
As histórias infiéis
Mais uma vez correndo o risco de ser abusada ou injusta, imagino que suas posições sobre infidelidade tenham a ver com sua história. É natural que você tenha uma tolerância maior a relacionamentos extraconjugais, visto que seu pai nunca assumiu os três filhos que teve com sua mãe. Você diz que a mulher que seu pai realmente amava era sua mãe. E que foi por covardia que ele não deixou a família "oficial" para ficar com ela.
Não sou moralista, muito menos ingênua. Os relacionamentos fora do casamento deixaram de ser um erro em si há muito tempo, apesar de eu acreditar que a fidelidade e o respeito são valores atemporais. O problema é: ter um relacionamento com uma pessoa casada implica clandestinidade, mentiras, ficar em segundo plano. Para quem não se importa, tudo bem. Mas se a mulher ou o homem desejam companheirismo, disponibilidade, dormir e acordar junto, não é nada saudável. E às vezes me parece que seu texto não considera esse lado e até romantiza o tal do "amor em segredo".
Qual o erro desse ponto de vista? Nenhum. Apenas acho que, no seu caso, essa visão pode ter a ver mais com uma absolvição do seu pai do que com princípios liberais em si. Uma absolvição necessária, já que você faz questão de valorizar sua ascendência. Procuro motivos para isso, além do seu possível desejo de ser reconhecida como filha do "maior artista do país", ao invés de buscar reconhecimento por si própria. Fazendo uma comparação talvez meio esdrúxula, nunca vi a Silvia se referindo a si mesma como filha do Chico Buarque. Bem, pode ser porque ela nunca escreveu livros ou eu nunca tenha lido nada dela.
Gostaria de lembrar que todas as coisas que eu disse aqui foram baseadas no que você conta no livro. As interpretações são minhas, mas os fatos são seus. Não li nenhuma biografia sobre seu pai, portanto não conheço a vida pessoal dele. Pelo que você conta, me parece que os personagens de Nelson Rodrigues são hipérboles, metonímias ou metáforas das pessoas da vida real. Aliás, pelo que ele mesmo conta: "o personagem do palco é mil vezes mais real, mais denso e, numa palavra, 'mais homem' que cada um dos espectadores. (.) Percebemos, então, que a espectadora de carne e osso não vive realmente, imita apenas a vida. (.) Nada conhece, nada sabe dos desesperos, das paixões, das agonias que a poderiam alcançar à plenitude de sua condição humana".
Seu pai escreveu essas frases em 1954, para o programa de Senhora dos afogados, encenada pela Companhia Dramática Nacional, com direção de Bibi Ferreira. E o texto completo deste programa está disponível em Peças míticas, o segundo dos quatro volumes que compõem a coleção Nelson Rodrigues: teatro completo (Nova Fronteira, 2004, 303 págs.).
Sonia, o sofrimento talvez tenha feito você "viver realmente". Mas é preciso colocar um limite entre o dramaturgo e o pai. O talento de um não desculpa os defeitos do outro. E mesmo que não se possa ser filha de Nelson Rodrigues impunemente, imagino que você poderia aproveitar melhor a genética se colocasse, em primeiro lugar, a Sonia, e depois o Rodrigues. Ou você acha que contar no blog quem é seu pai vai fazer as pessoas gostarem mais do seu texto?
Como você pode ver, os meus comentários não foram muito lisonjeiros, mas vieram em grande quantidade - o que mostra como seu livro é passional. Talvez eu não tenha refletido sobre "as armadilhas dos afetos, a liberdade de gostar, a solidão e os encontros possíveis" da minha própria vida. Mas o fiz em relação à sua. Filosofia de boteco, análise superficial, meter o nariz na vida alheia? Pode ser tudo isso. Mas é o preço que pagam aqueles que têm a audácia de abrir o coração.
Adriana, já faz um bom tempo que eu tenho gostado dos seus textos escritos no Digestivo Cultural. As suas análises são muito bem feitas e coerentes, além de criativas. Continue a ser o que você é (ótima...). Abraços e mil saudações, Maurão