Literatura e história sempre andaram de mãos dadas, a literatura
traduzindo a história em personagens, enredos, prosa e verso, tornando-a
popular e compreensível para maior quantidade de pessoas; a história
alimentando a imaginação e recheando as páginas da literatura.
Por vezes, mais que de mãos dadas, estiveram abraçadas, grudadas,
unas. É o que acontece em Romanceiro da Inconfidência (Nova
Fronteira, 288 págs., 2005), de Cecília Meireles, que resgata
em versos as personagens e o contexto da Inconfidência Mineira.
Verdade que o próprio livro já faz parte da História da Literatura. Publicado originalmente em 1953, é leitura obrigatória de vestibulares, conta com cerca de 15.000 citações no Google e inúmeras edições, uma delas lançada recentemente e ilustrada por Renina Katz. Mas esta edição, da Nova Fronteira, aposta acertadamente no texto, acrescentando uma apresentação de Ana Maria Machado e uma conferência em que Cecília conta como escreveu o Romanceiro. A apresentação vale o livro, e compensa a conferência.
Em poucas e fáceis palavras, Ana Maria resgata a origem oral da poesia para explicar o uso de rima, estribilhos, paralelismos, refrões, que facilitavam a memorização. Conta a origem do termo "romance" (à moda dos romanos) e didaticamente conclui que "chamamos de romance hoje, em poesia, os poemas narrativos que os colonizadores nos trouxeram e ficaram muito populares no Brasil, feitos em redondilhas (versos de cinco ou sete sílabas), com rima nos versos pares e bastante uso de repetições e paralelismo". A apresentadora ainda cita o Romanceiro Cigano, de Frederico Garcia Lorca, inspiração de Cecília, e adverte que, apesar da tradição do Romanceiro ser de métrica rígida, "em Romanceiro da Inconfidência há variedade de formas, métricas distintas, liberdade nas rimas e muita inventividade".
Já a conferência de Cecília, proferida no 1º Festival de Ouro Preto, em 20 de abril de 1955, decepciona. Ainda que a explanação não tenha sido feita num Congresso de Escritores, numa Oficina Literária ou numa Universidade de Letras, frases como "Deixei Ouro Preto, mas seguiram comigo todos esses fantasmas" e "aqui o artista apenas vigia a narrativa que parece desenvolver-se por si, independente e certa do que quer" podem levar o leitor a acreditar que literatura é inspiração. Que a poeta não se preocupou com rimas, aliterações ou métrica. Que a poeta não pesquisou nem investigou a história brasileira e portuguesa dos setecentos. Que a poeta nada mais fez do que começar a escrever. Quando tudo o que segue diz o contrário. Ainda que a platéia deva ter ido ao delírio, poderia ter Cecília explorado mais, por exemplo, o motivo pelo qual nenhum mineiro, quase duzentos anos depois, escrevera sobre a Inconfidência. A própria autora cita que deve ter sido o trauma, mas pára aí, não retoma a história tão bem pesquisada.
O Romanceiro em si, para quem ainda não leu e terá a oportunidade
através desta bela edição, traz 84 romances, mais quatro
cenários e poemas que chamo de prólogo e êxodo (numa referência
às tragédias). É notável o cuidado da autora em
dividir os romances em partes cronológicas, escolher em cada uma destas
partes um ou dois protagonistas - Tiradentes, Tomás Antônio Gonzaga,
D. Maria I, a Louca - e não deixar os fatos históricos principais
sem menção nos textos, o que sugere um planejamento rígido
semelhante aos escritores realistas - e contraditório ao que diz em sua
conferência. Também é evidente o uso planejado de recursos
poéticos, a métrica mais curta em romances tensos, a métrica
alongada em romances líricos.
A poesia musical de Cecília torna fácil a percepção de aliterações e assonâncias, como nesta estrofe, em que as vogais se alternam entre as sibilares, marcando a dicotomia Portugal e Espanha de um lado e o casamento próxima, porém tenso, de outro.
"Já se preparam as festas
para os famosos noivados
que entre Portugal e Espanha
breve serão celebrados."
("Da transmutação dos metais", Romance VI)
O discurso engajado de um sujeito poético sem medo de assumir um lado não apenas marca o Romanceiro como o alista ao lado dos grandes romances de 30, recém produzidos e ainda influentes, numa luta da palavra contra os desmandos (antes de Portugal, à época do capitalismo norte-americano).
"Estes branquinhos do Reino
nos querem tomar a terra:
porém, mais tarde ou mais cedo,
os deitamos fora dela."
("Do sapateiro Capanema", Romance XLII)
Vale lembrar que a Inconfidência, uma revolução interrompida antes que eclodisse e que poderia ter antecipado a Independência e mudado a história do Brasil, foi reprimida com grande violência pelas autoridades locais. Além de enforcar e esquartejar Tiradentes, o grande poeta árcade Cláudio Manoel da Costa morreu na prisão no mesmo ano, 1789, e o ainda maior Tomás Antônio Gonzaga, o Dirceu da Marília, foi exilado em terras africanas.
Outras estrofes do Romanceiro da Inconfidência, incrivelmente escritos há cinqüenta anos atrás, referindo-se a um acontecimento de dois séculos atrás, permanecem atuais e poderiam ser a epígrafe de qualquer editorial de um jornal dos anos dois mil.
"(A terra tão rica
e - ó almas inertes! -
o povo tão pobre...
Ninguém que proteste! (...)"
("Do animoso Alferes", Romance XXVII)
A esta altura poderíamos nos entregar a um clichê e dizer que
Romanceiro da Inconfidência é uma bela senhora de mais de
cinqüenta anos. Mas não seria justo. Como a história que
Cecília conta da Inconfidência, escolhendo heróis e vilões,
culpados e inocentes, é semelhante a história que os contemporâneos
contam, atribuindo a Tiradentes o título de primeiro - e talvez único
- herói da Independência, a obra literária permanece extremamente
atual e interessante. Diferente da tal conferência.
Para ir além