COLUNAS
Sexta-feira,
23/12/2005
O Presépio e o Artesanato Figureiro de Taubaté
Ricardo de Mattos
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"Ora, estando ali, aconteceu completarem-se os dias em que devia dar à luz, e deu à luz o seu filho primogênito. Enfaixou-o e o reclinou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem" (São Lucas: 2,6-7)
As primeiras peregrinações à Jerusalém com o intuito de celebrar o nascimento de Jesus deram-se por volta do século III. Se não demorou muito para que ganhassem vulto as homenagens ao tema específico, através da pintura, do mosaico e da escultura, a forma mais difundida de expressão do grande acontecimento precisou esperar até o século XIII para surgir. Todos sabemos que São Francisco de Assis, em 1.223, organizou o primeiro presépio, constituído meio por imagens, meio por figuras reais. O santo resolveu trocar a missa na igreja por uma celebração ao natural, reunindo animais, imagens e pessoas numa gruta da floresta de Greccio. Calcule-se para a época o impacto da novidade: as pessoas voltaram no tempo e "presenciaram" o fato narrado no evangelho de São Lucas. Uma idéia tão impressionante não merecia ser esquecida. Por isso a repetição do feito através dos séculos.
Fala-se que o termo "presépio" origina-se o hebraico praesepium, o que é um engano evidente visto o termo ser latino. Seria mais exato afirmar que praesepium seria a latinização dum termo hebraico. Enfim, praesepe, praesaepe, praeseps, praesaeps, praesepium, praesaepium: o significado é estábulo, curral, redil, cavalariça, estrebaria. Por extensão, manjedoura - ou manjadoura, como querem os portugueses. No sentido figurado, o lugar onde se come ou janta, provavelmente caracterizado pela extrema rusticidade. Os autores neo-testamentais podem ter querido dizer que o Santo Casal, não encontrando melhor hospedagem, conformou-se com um albergue imundo. A tradução latina e depois a transposição para o idioma de cada país é que podem ter desconsiderado o sentido pejorativo, empurrando São José e a Virgem Maria para o estábulo, onde a tradição católica instalou-os definitivamente para melhor caracterizar a humildade do nascimento do Cristo. Quanto ao significado de lugar fechado, cercado, guardado, praesepium e praesidium aparentam-se. Não esquecer do taubateanês presépi: "'Bora armá o presépi, lerdeza!".
Uma das primeiras construções taubateanas é o Convento de Santa Clara, fundado no século XVII pelo franciscano Frei Jerônimo de São Brás. Por doação do século XIX, o conjunto foi entregue aos capuchinhos. Entretanto, foram os franciscanos quem trouxeram aos da terra a tradição de armar o presépio na véspera de Natal. As primeiras peças eram italianas e sabe-se lá por onde andam. Seja para repor peças danificadas, seja para atrair o interesse dos fiéis e fazer com que se entrosassem nos assuntos da religião, seja até para aumentar o número das peças, os frades encomendavam a alguns moradores mais hábeis imagens dos santos, anjos pastores e animais. Ao lado dos primeiros artesãos - os santeiros - que buscavam seguir os modelos europeus, surgiram os encarregados de fazer as demais figuras: os figureiros. A ocupação inicial limitava-se à confecção, inclusive para adorno particular, de carneiros, burricos, vacas e outros animais. Logo outras figuras foram sendo inventadas e adicionadas: trabalhadores, aves locais, gatos, raposas, cavalos. Em pouco tempo os figureiros passaram a criar presépios inteiros, do Menino Jesus aos animais. O que era fabricado para uso próprio e doméstico, passou a ser objeto de presente e finalmente de venda. Até a classificação predominou, pois atualmente tanto o que se ocupa de imagens de santos quanto os que se especializam nas demais são igualmente chamados figureiros. No começo o ofício era próprio das mulheres, por isso é mais comum referir-se às figureiras.
As figuras são feitas com a argila recolhida na beira dos rios ou comprada de fornecedores. São moldadas por mãos treinadas e logo verifica-se a intenção da figureira. Não há um equipamento adrede destinado, o auxílio vem de pedaços de madeira, palitos, canivetes ou facas. Recorre-se ao arame para a sustentação das peças maiores e mesmo como parte delas, a exemplo das "chuvas" (primeira imagem). Quando a figura está pronta, é colocada pra secar ao Sol durante um mínimo de 24 horas. Se o clima está nublado ou frio, a secagem dá-se na beirada de fogões a lenha. Já existe na "Casa do Figureiro" um forno elétrico para trabalhos maiores, que podem exigir secagem mais rápida e garantida. Finalizada esta fase, vem a pintura. As peças mais antigas que eu já vi tinham a policromia mais simples e com predomínio de cores primárias. Hoje o recurso pictórico é maior, assim como a atenção aos detalhes. Tenho uma dupla de dançarinos de moçambique cuja fisionomia foi delineada com esmero. Antes e agora, o predomínio é da vivacidade. Há artesãos que, além de pintar suas figuras, enfeitam-nas com penas, fitas, palha e o que mais considerar conveniente. É necessário esclarecer que a habilidade destas pessoas não se traduz em facilidade.
Como todo trabalho humano, há obras de principiantes e obras praticamente barrocas, de tão ricas e esmeradas. Visitando o local onde concentra-se a produção para a venda, encontrei figuras que eu mesmo poderia ter feito. Outras deixam o apreciador boquiaberto. Todos seguem as mesmas características, mas não há um padrão - que beira o normativo. Tanto que os conhecedores sabem identificar a autoria desta ou daquela figura pelos detalhes pessoais que o artesão adiciona. Além da citada dupla de moçambiques, possuo um pavão grande no escritório e um menor em casa, no presépio.
Pode-se dizer ilimitado o acervo de figuras. Os de maior evidência são o presépio - quer de peças soltas, quer de peça única (segunda imagem) - as chuvas, São Francisco de Assis, e o pavão. Tudo iniciou-se com o presépio. A "chuva" parece ter sido inspirada numa árvore cheia de pássaros: tirou-se a árvore, mas conservaram-se as aves em suspenso. Muitos outros animais podem formar a chuva, como galinhas d'angola, pombos, tucanos, galos e galinhas, bois, boi-bumbá. Não sei dizer se a presença de São Francisco é uma homenagem consciente ou não ao criador do presépio pelo qual eles ficaram conhecidos e de onde muitas vezes tiram seu sustento. Com o nome de São Francisco das Chagas, é o padroeiro da cidade. Quando nomeado "de Assis", é representado com pombos. O pavão, chamado também de "galinho do céu", é uma das figuras mais bonitas e tão conhecida que tornou-se símbolo do folclore taubateano. A maioria tem a cauda em leque; quando está com ela abaixada, é chamado "pavoa". Este pavão é nosso produto de exportação. Já foi localizado no Louvre e antiquários de Paris. Além de correr todo o país, há registros de que tenha sido levado para a Itália, Argentina, China, Japão, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos.
[Pavão da autoria de Eduardo Leite Santos, figureiro taubateano]
Fora as quatro figuras destacadas, podemos encontrar animais variados: cães, gatos, cavalos, burros, vacas, bois, carneiros, galinhas, pássaros, onças e aves nativas. Num entrosamento valioso, surgiram as figuras extraídas da literatura infantil de Monteiro Lobato: Emília, o Saci, Visconde de Sabugosa, Tia Nastácia, Dona Benta, Pedrinho, Narizinho. Peças do folclore, como o lobisomem e o curupira. Todas as profissões são encontradas, desde as mais antigas e próprias das cidades coloniais, até as mais modernas: lavadeiras, lenhadores, vendedores de galinhas, médicos, engenheiros, advogados e dentistas. Podem ser acrescidos palhaços, cenas domésticas, danças folclóricas - moçambique, quadrilha, congado, bumba-meu-boi -, sanfoneiros e outros músicos, a Sagrada Família, procissões e orixás. O que a pessoa interessada procurar e não encontrar, pode ser encomendado.
As figuras começaram a ser vendidas no mercado municipal. Os figureiros armavam suas barracas ao lado das que vendiam alimentos, ou contentavam-se em estender uma toalha no chão. Isso ainda existe por aqui e em São Luiz do Paraitinga. Como as artesãs moravam todas no bairro onde situa-se a capela de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, a referência local prevaleceu: as figureiras da Imaculada. Ainda hoje é possível correr a Rua da Imaculada Conceição e entrar em contato direto com elas em suas casas. Há alguns anos a municipalidade teve a feliz idéia de concentrar os trabalhos num local mais amplo, a Casa do Figureiro. Cerca de quarenta figureiros lá expõem e vendem seu trabalho. A loja possui estantes com prateleiras reservadas para cada um deles, prateleiras estas identificadas com a foto, nome e contato do expoente. Anexo à loja, um pátio onde elas podem reunir-se para trabalhar "ao vivo" e uma oficina onde encontram-se as peças nos diferentes estágios de produção.
Reparo que uma forma de homenagem acabou virando o tema principal. Se primeiro recorria-se ao presépio para celebrar o advento do Cristo, o alvo atual do engenho humano é o presépio em si, desprovido do carácter celebratório inicial. A imaginação desvincula-se da Fé e tenta criar o presépio mais criativo, original, surpreendente e até polêmico. Vale tudo, de papel, sarrafos, plástico, copos descartáveis e sucata até mulheres nuas, como recentemente na Itália, si lembro-me bem. Por isso admiro o trabalho das figureiras. Vendem peças e aceitam encomendas por haver demanda e por viverem disso. Entretanto, seus trabalhos são sustentados pelo benigno orgulho de bem continuar a tradição de suas avós e pela crença, no caso dos presépios, de não estarem a modelar meros enfeites.
Para ir além
Casa do Figureiro "Maria da Conceição Frutuoso Barbosa": Rua dos Girassóis, número 60, Campos Elíseos, CEP 12.090-290, Taubaté, Estado de São Paulo. Telefone: (12) 3625-5154
Ricardo de Mattos
Taubaté,
23/12/2005
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