COLUNAS
Quarta-feira,
1/2/2006
Um teatro que foge do óbvio
Guilherme Conte
+ de 3200 Acessos
Num cenário marcado pela repetição de fórmulas já consagradas - com honrosas exceções, mas também com ótimas montagens dentro desses parâmetros -, é de se louvar iniciativas bem sucedidas na busca de novas formas de se fazer teatro. É o caso de Suíte 1, da Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba.
A peça segue em cartaz até o dia 19 de fevereiro no Instituto Cultural Capobianco, que começa a despontar como uma casa com um belo crivo de seleção de espetáculos. A direção é de Marcio Abreu (que passou por aqui recentemente com Luís Melo e sua Daqui a duzentos anos). É a estréia nos palcos brasileiros de um texto do festejado (pelos lados de lá) dramaturgo francês Philippe Minyana, dono de um belo texto, rápido e ácido, intrinsecamente ligado ao cotidiano.
O elenco, apurado, possui um alto nível técnico. É formado por Chiris Gomes, Giovana Soar (que também assina a tradução), Nadja Naira (responsável, no palco, pela iluminação) e Thais Tedesco. Além destes, duas atuações se destacam pela força e pelo evidente domínio da cena: Ranieri Gonzalez e Christiane de Macedo. A força de conjunto do grupo é notável.
Um dos grandes charmes da peça está na forma em como a história é contada. Por meio de situações numeradas denominadas de "Conversa" e "Refeição", um homem e cinco mulheres conversam tentando reconstruir a memória de um episódio que se mostra traumático. Nada é dito de forma clara e definitiva. Ao contrário, as sugestões se sobrepõem, formando um mosaico que aos poucos revela relativa coerência.
"O interessante está justamente no fato de que a história só ganha sentido, só pode ser contada da forma em que foi escrita", afirma Marcio. Essa dialética é o que garante a força e a própria possibilidade narrativa. "A forma e o enredo são igualmente importantes", completa Giovana. É nesse ponto que reside a grande sacada de Minyana. Um exercício minucioso, artesanalmente construído.
Outro ponto fundamental na dramaturgia de Minyana, e particularmente em Suíte 1, é a questão da musicalidade presente no texto - diga-se de passagem, uma das questões que inquietam alguns dos grandes dramaturgos contemporâneos. Mais do que as próprias palavras, o que interessa é a forma como elas são ditas, os sons que elas carregam. Minyana já falou longamente sobre isso: "O teatro é, para mim, palavras que rolam, que fazem barulho".
Assim, esta musicalidade esteve em foco desde o início da concepção da montagem. "O desafio estava em como concretizar uma expressão efetiva", conta Marcio. "Aí residia a grande preocupação: o trabalho de construir o sentido a partir da execução da sonoridade."
Um aspecto extremamente interessante da montagem é o fato de tudo, absolutamente tudo ser feito às claras, no palco. A água do café é fervida ali mesmo, as caixas de comida chinesa saem de uma pequena geladeira, a música sai de um mini system. A própria iluminação é controlada por Nadja no palco.
Ideologia? Longos discursos prontos sobre filosofia do teatro? Não. Marcio e sua companhia não perdem tempo em discussões inócuas sobre rótulos e fórmulas. "Nós optamos por uma encenação absolutamente às claras, honesta, mas sem ter com isso a pretensão de se filiar ao naturalismo ou a qualquer escola ou movimento", afirma Marcio. "Trabalhamos com a realidade." Simples assim.
O tempo nas cenas também é um elemento muito caro à montagem. Do ritmo frenético da "Conversa 1" às longas pausas de "Refeição 4", é ele quem rege as conversas, os tons, as pequenas nuances das personagens. "Esse ajuste foi muito difícil", conta Nadja. A velocidade do texto - e ele próprio, quase abstrato, profundamente pontual - também "complicou" o trabalho dos atores. "Não havia deixas, as frases eram muito parecidas. Quase iguais, mas com diferenças mínimas", continua. Nós só conseguimos realmente dar corpo à peça quando passamos a encarar o texto como música", diz Christiane.
Os diálogos aparentemente banais, simples, mostram-se gradativamente reveladores. As questões aparecem aos poucos, e sua força cresce junto com a tensão das personagens. "Quando li o texto pela primeira vez, terminei em prantos", conta Marcio. "Ele nos toca com questões profundas, que falam a todos, a partir da perda da memória. O que buscamos? O que deixamos para trás? O que é realmente importante?"
É bom notar que uma peça aparentemente hermética, difícil, tem conseguido boa receptividade por onde passa. Em se pensando o texto, é esta verdade presente nele que o aproxima de todos nós. "As pessoas se identificam ora com uma personagem, ora com uma situação, ora com uma frase", diz Marcio. O público busca este terreno, o do comum. A experiência resulta de como ele ressoa em cada um dos espectadores.
Dito isso tudo, é quase inacreditável saber que a montagem foi levada ao palco após quatro semanas de ensaio. "Fomos do pânico ao prazer absoluto", conta Christiane. "Foi muito difícil, era uma dramaturgia a que não estávamos acostumados", diz Ranieri. "Mas também muito prazeroso, divertido."
Suíte 1 encaixa-se, na trajetória da Companhia, na esteira de espetáculos como Volta ao dia... e O empresário. O grupo foi criado em Curitiba no ano de 1999 com o objetivo de buscar novas formas de se fazer teatro, pensando o próprio teatro em cada espetáculo. "A idéia que nos move é pensar que relação ainda é possível entre os artistas e o público", diz Marcio. "Queremos novos caminhos, trazer problemas. Fazer um espetáculo, para nós, nunca é trazer algo resolvido. Não há descanso." Que bom.
Para ir além
Suíte 1 - Instituto Cultural Capobianco - R. Álvaro de Carvalho, 97 - Centro - (11) 3237-1187 - Sexta e sábado, 21h; domingo, 20h - R$ 30,00 - Até 19/02.
Guilherme Conte
São Paulo,
1/2/2006
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
Dheepan, uma busca por uma nova vida de Guilherme Carvalhal
02.
As páginas de terra de Mia Couto de Viegas Fernandes da Costa
03.
Dois em um de Rennata Airoldi
04.
Shadow of the Vampire de Daniela Sandler
Mais Acessadas de Guilherme Conte
em 2006
01.
A essência da expressão dramática - 26/4/2006
02.
13º Porto Alegre em Cena - 15/9/2006
03.
Sua majestade, o ator - 18/1/2006
04.
O melhor do teatro em 2005 - 4/1/2006
05.
Um Brecht é um Brecht - 5/4/2006
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|