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Sexta-feira, 24/3/2006
Sombras Persas (II)
Arcano9
+ de 4700 Acessos


O amor pelos EUA nos muros da antiga embaixada americana em Teerã

Teerã, 30/10

Pela janela do meu quarto, que fica no quinto andar de um prédio antigo perto da Praça Valiasr, dá para ver, ao longe, as montanhas da cidade. As montanhas Alborz, que separam a capital iraniana da costa sul do Mar Cáspio, são altas e fazem a fronteira norte da cidade, talvez a uns dez quilômetros do centro. Parecem peladas, não têm uma mancha de verde, não sei se isso é natural ou se foram descascadas pelo homem. Não canso de ver a vista da janela, mesmo agora à noite, ao final deste longo dia. Entre as montanhas e o meu hotel, uma barreira de casas de dois, três andares, também pequenos prédios, todos meio caídos, alguns iluminados com luzes coloridas, antecipando a festa da próxima quinta-feira do fim do mês sagrado do Ramadã, durante o qual os muçulmanos guardam jejum durante o dia. Com o Sol, as casas e prédios têm todos uma cor cinza, puxando levemente para o ocre, a cor predominante das montanhas. Algumas casas têm grandes terraços, perfeitos para aproveitar as noites de verão. Outras têm imensas janelas, e eu as espio esperando ver alguém atrás delas.

Tudo parece empoeirado por aqui. Cheguei às 6h20, e, graças a Deus, o taxista que arrumei para me resgatar no saguão de desembarque apareceu no horário. Cansado como eu estava da viagem, foi perfeito vê-lo com o cartaz com o meu nome no terminal, que, aliás, estava meio vazio. Parece com o aeroporto de São Paulo, e essa não é a única semelhança entre Teerã e a capital paulista.

A capital iraniana deixa uma rápida impressão em você, logo ao chegar. É uma cidade espalhada, de longuíssimas avenidas e congestionamentos absolutamente insuportáveis. É suja, não tanto por papéis no chão, mas porque o ar é pesado de partículas de origens diversas, gases tóxicos, fuligem, poeira vinda de desertos distantes e das montanhas descascadas ao norte. A frota da capital iraniana soma três milhões de veículos, e cerca de 2 milhões deles têm mais de 20 anos de idade. Para piorar, as montanhas têm o potencial de sufocar Teerã, impedindo que a poluição se disperse. É a primeira cidade que visitei na vida com gente nas ruas usando máscaras para não respirar poluição. Havia visto isso na TV, em imagens feitas em alguma cidade sul-coreana. Pensei que era exagero.

Começo a puxar papo com o cordial motorista, que demonstra grande prazer em descobrir minha recém-desenvolvida habilidade em seu idioma. Supero meu primeiro grande desafio e ele parece entender o que perguntei: quanto tempo demoraríamos até o hotel. Mas falho miseravelmente no segundo teste, e não entendo bulhufas de sua resposta. Ou não entendo as palavras, pelo menos. A expressão corporal dele me diz para relaxar porque será uma longa jornada.

Me abstraio após 20 minutos, vejo casas e sobrados velhos, muito mal cuidados, mas não vejo favelas. A janela do carro me mostra um subúrbio pobre, sem nenhum atrativo. A abstração é complicada: o barulho me distrai. Não é só uma questão de trânsito pesado e poluição, profunda, intensa, opressiva poluição. Há também as buzinas histéricas e os pneus gritando. E o absoluto caos das travessias de pedestres, pedindo minha atenção incrédula. Pobres diabos, rebolando em cada espaço do asfalto para evitar carros e motos apressados. Faixas de pedestre não parecem ser de grande valor por aqui. Antevi problemas, para mim e meus pés. Depois, conversando com um amigo meu que vive no Cairo, ele me disse que essa confusão é algo constante nas grandes cidades dos países do Oriente Médio.

O que me diz mais claramente que estou a 6h30 a mais de diferença em relação ao horário de Brasília? As mulheres, sem dúvida. No Irã, é lei as mulheres usarem a indumentária toda para esconder suas curvas da lascívia masculina. Há as mais religiosas que usam o tradicional chador: um longo pano preto, sem botões ou mangas, cobrindo todo o corpo e a cabeça, menos o rosto (não no Irã); há as que optam apenas por usar o lenço na cabeça e uma espécie de camisa ou jaqueta longa, que vai até o joelho e cobre o traseiro. O tom das roupas femininas em geral é escuro, é triste. Mesmo as mais moderninhas da alta sociedade ocidentalizada de Teerã (claramente discerníveis por terem, muitas vezes, metade da cabeça de fora dos lenços atados ao pescoço, deixando os cabelos sedutoramente visíveis) parecem não abusar dos tons mais fortes de verde ou azul. Vermelho é uma ausência constante por motivo religioso - é uma cor associada a um inimigo de um dos "santos" adorados pelos muçulmanos daqui, o Imã Hossein. Só vi meninas de até 13 anos usando vermelho, nenhuma mais velha que isso. Mas em todas as mulheres, em todas as cores escuras, em todos os lenços e chadores, o mesmo tom empoeirado. Elas estão em peso nas ruas - ao contrário do que pensei, que elas ficariam mais em casa do que batendo perna por aí. Estão na TV como apresentadoras (com o véu e tudo); estão nas lojas, estão no guichê de controle de passaporte. Mesmo assim, duvido que a evolução desta sociedade permita que elas sejam no futuro mecânicas de automóveis ou candidatas a presidente, ou qualquer coisa tradicionalmente ligada aos machões daqui. São lindas, mesmo escondidas, ou talvez justamente por isso. Seus olhos, sempre amendoados, se tornam o principal atrativo com tantos trapos escondendo seus outros encantos. Maquiagem, geralmente pesada, é praticamente uma lei. Não encontrei uma de olhos claros, e as loiras, as poucas que encontrei, não podiam ser loiras naturais. É inegável que é uma cidade uniforme do ponto de vista étnico: não vejo negros, não vejo japoneses, mesmo brancos europeus são raridade nas ruas de Teerã.

* * *

Cheguei ao hotel e desmaiei até a tarde, quando decidi levar a mochila para passear. Sol forte, céu azul e as montanhas diluídas em uma névoa seca. O trânsito piorou e não há o que fazer a não ser procurar onde a massa humana atravessa de uma calçada a outra sem semáforo de pedestres. Os policiais de trânsito parecem espantalhos que há muito não assustam os corvos Paykan. Paykan é uma palavra que você aprende rápido em Teerã, aliás. É o nome do modelo de carro que compõe, facilmente, 75% da frota da cidade. Parece com um Lada que chegou a ser comum no Brasil nos anos 80/90, um bem simples, com a parte de trás quadrada, o porta-malas saliente. Os Paykans vorazes, uns mais decrépitos que os outros, são a preferência dos taxistas que não fazem cerimônia alguma para parar ao lado dos espantalhos e, ao berros, procurar por pessoas para dividir corridas com outros passageiros, só partindo quando o veículo enche. O compartilhamento de veículos, como em outros países desta região do globo, é de praxe.

O que não faltam em Teerã são outdoors com imagens de Khomeini Os repetidos outdoors com propaganda do regime (em geral, com o rosto de Khomeini) e as cobrinhas do alfabeto nas ruas também me lembram constantemente que estou em outro planeta. Passando em frente à universidade de Teerã - foco de outrora raras e hoje inexistentes ondas de reformismo que em geral não resultam em nada a não ser hematomas nos pobres dos estudantes - vejo um cartaz e percebo, para meu espanto, que nem lembro do tempo em que não sabia ler. Me tornei um completo analfabeto da noite para o dia. Sei ler os números, e só. É irritante. Penso que isso, no decorrer da minha viagem, vai me proporcionar uma experiência interessante, mas certamente não é o caso neste início. A maioria das placas com o nome das ruas também têm o nome em caracteres ocidentais, mas isso não impede que eu me perca facilmente nas minhas caminhadas. Descendo a Avenida Ferdosi - uma das principais da cidade, ligando o norte à Praça Khomeini, no centro - sou obrigado a sacar meu guia da mochila para ver um mapa. É um erro, ou um acerto, pois me encontraram.

"Ei, você está com a edição antiga do guia", me diz um sujeito magrelo, de óculos e cego de um olho, o que é claro pelo branco em sua íris direita. Ele conversa comigo em bom inglês, como se fôssemos velhos amigos. Gerente de um hotel, ele explica que tem que saber a língua de Shakespeare para viver e diz que adora seu trabalho: lidar com viajantes de lugares distantes, tão longínquos quanto o Japão. "Recebo muitos japoneses, alguns alemães e poucos britânicos. Brasileiros? Muito raro."

Explico a ele que muitos me chamaram de louco quando divulguei meus planos de fazer minha turnê solo pelo Irã. "Há muita propaganda contra nós lá fora", disse. "As pessoas não sabem direito. Mas todas que ficam no meu hotel, eu faço questão de tratar bem. Hoje, eu não tenho que trabalhar. Mesmo assim, estou indo lá para ajudar os hóspedes, com o inglês e árabe que sei." Empolgado, ele não diminui o passo nem diante da vasta avenida recheada de Paykans que atravessa quase de primeira, comigo a tiracolo, deixando meus cabelos de pé. Falo sobre o protesto recente destacado pelo The Sun e das declarações do presidente Ahmadinejad contra Israel. "Não é nada de novo", diz, com tom de conformismo carregado de descaso. "Mas, mesmo assim, declarações como essa não ajudam muito. Não acho que ele começaria uma guerra. O Irã nunca começou uma guerra!", enfatiza. "Não foi assim na guerra com o Iraque."

Me despeço do meu novo e fugaz amigo com o cartão de seu hotel no bolso e a promessa de ficar lá na próxima vez. O meu estômago ronca após meu primeiro dia de Ramadã e finalmente encontro um belo restaurante escondido, não longe de um viaduto parecidíssimo com o minhocão de São Paulo. Peço o prato mais típico do Irã, o chelo kebab: arroz soltinho e fofo, branco e amarelo de açafrão, acompanhando de uma tira bem macia de carne grelhada com textura de hambúrguer, que se desfaz sem resistência com um garfo e uma colher. Para acompanhar, uma meia cebola crua e dois tomates grelhados.

* * *

Desço a Avenida Valiasr, a via que corta toda a megalópole de norte a sul e cruza a Praça Valiasr rumo ao centro. Faz frio na Praça Argentina, na zona norte, para onde fui para o último passeio do dia. Nesta parte da cidade e mais para o norte é onde mora a elite de do Irã: os jovens bem-educados e que falam inglês, os que têm carros do ano e não Paykans. O trânsito está mais calmo e paro em uma lanchonete com uma boa vista da avenida, no segundo andar de um sobrado com amplas janelas e um bom aquecimento.

Nas ruas, maridos e esposas com grossos casacos pululando de loja em loja, vendo sapatos e vestidos. Cinemas, muitos cinemas, nenhum deles com filmes do Brad Pitt, apenas produções nacionais desconhecidas para mim. Nada do diretor Abbas Kiarostami, a propósito, só filmes novelescos, com atores e atrizes bonitos em enrolados e glamourosos casos de amor à la Bollywood. Muita gente do lado de fora dos cinemas, saindo ou entrando, 90% deles jovens, mas nada de carrinhos de pipoca. Vejo algumas crianças, as meninas alegremente usando o véu. Uma ou outra mulher de chador, geralmente acompanhada de outra, também com o pano preto cobrindo todo o corpo. Grupos de homens adolescentes tagaleras e barulhentos descendo a avenida, alguns com as mãos dadas. Daí a pouco um deles se despede dando quatro beijos no rosto do amigão do peito. A avenida é ampla, mais de três pistas. Cheiro de escapamento, barulho de buzinas eternamente no fundo do quadro. Prédios cinzas. Descer a Valiasr me parece descer a paulistana Brigadeiro Luiz Antônio. Quando penso nisso, exatamente quando penso nisso, começa a garoar.

Como em São Paulo, a explosão populacional da capital iraniana é um fato relativamente novo, assim como seu status político. Na antiguidade, por volta do sétimo século antes de Cristo, a cidade mais importante desta região era certamente Ecbatana, a antiga capital dos medos, que ficava mais ou menos onde fica hoje a cidade de Hamadan, a cerca de 300 km de Teerã. No século XI, a cidade de Rey, hoje um subúrbio ao sul da capital iraniana, era um centro mais importante do que a própria Teerã. Só depois que Genghis Khan destruiu Rey, em 1197, é que estava aberto o caminho para que Teerã crescesse, aos poucos, mas com solidez. Na metade do século XVI, um rei da dinastia Safavida decidiu embelezar a cidade, construindo muralhas e jardins, mas não transferiu para cá a capital. Isso só aconteceria com a dinastia Qajar no século XVIII. Na mesma época que a paulicéia vivia o seu inchaço proporcionado pelo café, Teerã também engordava. Em 1887, a população era de cerca de 250 mil; em 1976, chegava a 4,5 milhões. Hoje, estima-se que a cidade tenha algo em torno de 12 milhões, mas difícil saber ao certo: a cada dia, ela continua atraindo mais e mais pessoas do interior.

Me sinto em casa, mas também longe de casa. Estou confuso. É muito estranho.

Finalmente volto ao quarto do hotel e abro as cortinas. Ainda não vejo ninguém naquela imensa janela de frente à minha. Mas acho que, em algumas dessas dezenas de janelas mais próximas ou mais distantes, deve ter alguém com um microscópio me bisbilhotando, curioso quanto à possível existência de hemácias alienígenas se misturando ao sangue da grande cidade.


Olhando pela janela a cidade empoeirada, irmã de São Paulo

(Continua...)


Arcano9
Londres, 24/3/2006

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