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Quinta-feira,
23/3/2006
Sem receio do monolito
Vitor Nuzzi
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Acima da verdade estão os deuses.
A nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.
Ricardo Reis/Fernando Pessoa
Nos tempos de primário, surgiu um dia na classe um vendedor oferecendo o Meu Arquivo de Pesquisas, ou algo parecido. Era uma caixinha verde com vários pequenos fichários, tratando de diversas temas do conhecimento humano. E, perdão aos seus criadores, que talvez tivessem boas intenções, mas as fichas sobre personalidades traziam uns desenhos horríveis, rostos deformados, charges estranhas. Lembro até hoje do desenho do Emerson Fittipaldi, ninguém o reconheceria, nem ele. E o conteúdo, diga-se a verdade, também não era lá essas coisas.
Mas para pesquisar tínhamos o Atlas Geográfico Mundial, a Delta Larousse, a Barsa - que, segundo li dia desses, foi reformulada. Outra alternativa era recorrer às bibliotecas, deixar os dedos encardidos após horas e horas manipulando livros, revistas e jornais velhos.
Bem mais tarde, dei meus primeiros passos para tornar-me um rato de redação, coisa que não consegui ser até hoje. Mas, certamente, era um camundongo de arquivo. Porque era sempre à velha sala do arquivo que recorria na hora de pesquisar um determinado assunto. Cada tema dividido por pastas, com cópias de artigos. Ou então, o que me agradava muito, podíamos recorrer à coleção do jornal. E vinham aqueles livros enormes, pesados, com exemplares do início do século passado. Que gosto havia em consultar aqueles jornalões. Gostava, particularmente, de ver os filmes em cartaz e os anúncios, ou aquelas pequenas notas de canto de página. Às vezes, contrariando uma velha canção de Chico Buarque, a dor da gente saía no jornal.
Certo, aqui trata-se de falar do Google, e lá se vão alguns milhares de toques em outros assuntos. Outros? Nem tanto. Desde o tempo do primário, e no meu caso lá se vão algumas décadas, o que move o pesquisador é a curiosidade. Para alguns, a ignorância. Para outros, a ânsia de saber. Vá lá, muitos por obrigação. Mas o instinto é o mesmo. E o Google nada mais é do que um imenso arquivo.
Ao trabalho. Vou ao Google e digito a palavra... Google. Seleciono "páginas do Brasil". E me aparecem 6,640 milhões de resultados. Recorro à Bíblia: 4,640 milhões. Descubro, assombrado, que o nosso presidente tem ainda mais respostas: 5,760 milhões de Lulas. E, pelo menos por aqui, ganha fácil do colega presidente americano, já que o Google nacional encontrou 1,630 milhão de Bushs.
Vou à página de apresentação do Google. Deparo, curioso, ainda na introdução, com um ícone sobre por que devo recorrer a esse mecanismo de busca. A explicação está lá, imponente: o Google traz a ordem para a web, veio para colocar ordem nos caos de informação em que a rede teria se transformado.
Falta, no entanto, ordem à pesquisa. As informações estão lá. Muitas se repetem. Outras tem procedência duvidosa. E aqui cabe ao pesquisador agir como pescador, dando método ao processo. Em textos jornalísticos, já detectei expressões ou mesmo trechos inteiros vindos da internet. Vejo companheiros deste Digestivo alertando para as cópias feitas por estudantes. Exatamente como muitos de nós fazíamos anos atrás, mas com muito mais mão-de-obra.
Os recursos oferecidos pelo Google, ou mesmo outras ferramentas de pesquisa, não poderão substituir o ato de pensar. O prazer estará sempre na descoberta, não na imitação. E os milhões de arquivos concentrados na rede nada seriam caso diante deles pairasse apenas a nossa incompreensão. As enciclopédias concentram conhecimento, mas a cabeça humana pode multiplicá-lo. Caso contrário, seremos símios temerosos diante do monolito negro, como no filme 2001. Melhor ainda seria recorrer à música popular. Cantou Paulinho da Viola: as coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender.
Vitor Nuzzi
Rio de Janeiro,
23/3/2006
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