COLUNAS
Quarta-feira,
10/5/2006
Minha história com Cássia Eller
Ana Elisa Ribeiro
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Comprei um disco com muitas músicas curiosas. Não nego que a voz quase masculina me deixava fã. Era impressionante ouvir aquele timbre que confundia meus irmãos. Todos podiam jurar que aquele vozeirão não era de mulher. E eu dizia que era. Uma desconhecida, exceto pelo deslize de gravar "Por enquanto", da Legião Urbana. Foi assim que eu conheci Cássia Eller. Foi querendo cantar como um Renato Russo mais melódico.
Mas depois conheci Cássia num disco de vinil de capa clara. "Sonhei que viajava com você" era estupenda para ouvir alto. Aquele crescendo que a banda fazia dava arrepios na coluna. "Rubens" era engraçada, e era ali que eu percebia que Cássia Eller não era apenas uma voz diferente, era quase atriz, interpretava como se o palco fosse do teatro. As vozes não eram apenas canto, eram proeza. E eu me divertia, além de me deleitar, com o que ela fazia com seus personagens. Regravando Rita Lee e Beatles, Cássia apresentava o repertório de uma musa meio macho. E era assim mesmo.
Fui ao show de Cássia com Edson Cordeiro. Num estacionamento de shopping, sequer havia platéia para eles. Fiquei no gargarejo, logo embaixo do palco onde ela pisava pesado. Via Cássia bem de perto e me certificava de que aquilo tudo era mesmo cantado por ela. Cada faixa dos discos soava perfeita ao vivo. Edson Cordeiro se conformava em ter voz de estúdio e em pedir desculpas por não conseguir fazer ao vivo o que vendia no discão.
Até que Cássia caiu no gosto popular. Não digo isso no mau sentido. Com alguma orientação, ela passou a gravar canções que soavam menos estranhas a quem também ouvia rock dos anos 80. Passou a experimentar letras menos embaraçosas para uma camada média de população, passou a dispor de Nando Reis para produzir hits quase instantâneos. Entrou na era MTV, fez clipes, virou musa de capa de CD, contra tudo o que ela inspirava.
Cássia gravou pelo menos dois acústicos, com as mesmas canções de ninar que eu evitava ouvir. Ainda assim, nunca lhe dediquei uma greve ou mesmo jamais a reprovei em meu microsystem. Cássia sempre esteve lá, principalmente quando a descobri cantando que teria saudades da Maria.
Cássia foi minha trilha de muitas manhãs, quando eu queria decorar sua versão da paranóia delirante. Também a ajudei a interpretar as cartas do correio e a fiz cantar repetidas vezes, na mesma manhã, a música da nêga que deveria se casar com o capeta. "Ai, meu Deus, ai meu Deus o que é que há?"
Cássia foi minha trilha de estudos, música de cantar no banho, imitação, trilha de trabalho. Certa vez, numa escola, enquanto os alunos cumpriam uma tarefa de oficina de livro, cantavam, espontaneamente, canções de Cássia. E eu ficava feliz.
Canto junto com ela até hoje, seja nos CDs solo, seja quando regravou o Rei, Roberto Carlos, quando cantou para a Cuca, do Sítio do Picapau Amarelo, quando esteve sambista ou roqueira. Cássia pôde fazer tudo isso porque parecia várias.
Até que um dia Cássia morreu. Vi a notícia nos jornais. Esperei a noite para confirmar a tragédia. Era uma tragédia. Se Cássia morresse, nunca mais eu teria dela um CD novo para conhecer. Teria que me contentar com os existentes. E Cássia morrera mesmo.
Eu chorei. Eu entrei no banheiro e lamentei que Cássia tivesse morrido. Jovem, genial e tão insatisfeita. Chorei e, em homenagem, ouvi os CDs de Cássia naquele dia. Cantei com ela várias canções, como se naquele momento pudéssemos fazer um dueto. E fiquei esperando o segundo sol chegar para realinhar as órbitas dos planetas.
Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte,
10/5/2006
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