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Quarta-feira,
22/3/2006
Um Godot opaco
Guilherme Conte
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Começou a temporada de Samuel Beckett. Por ocasião de seu centenário, muitas montagens estão previstas. Apesar de isso ser motivo de comemoração, vale o puxão de orelha: é lamentável que o trabalho da envergadura de um Beckett só seja explorado como deve por aqui em um aniversário de nascimento ou de morte.
O Brasil, aliás, é o país da efeméride. Centenários pra lá, centenários pra cá. De repente, todo mundo monta Beckett. Passada a euforia, volta a ser o trabalho de guerrilha que é fazer esse tipo de teatro por aqui no circuito normal. As atenções, obviamente, estarão voltadas para outro centenário. Não há reflexão constante, falta repertório, o público não tem a chance de ver montagens sistemáticas. Assim, o trabalho de encarar um dramaturgo difícil como ele se torna ainda mais penoso. Tanto para quem faz como para quem assiste.
Mas chega de lamúrias, vamos ao que interessa: a bola da vez é a montagem de Esperando Godot, dirigida por Gabriel Villela, em cartaz no subsolo do SESC Belenzinho até o fim do mês - e, ao que consta, com os ingressos já esgotados. O ótimo elenco é formado pelas atrizes Bete Coelho, Magali Biff, Lavínia Pannunzio e Vera Zimmermann.
Esperando Godot é talvez a peça mais impressionante do século XX. Ela, que já foi classificada como "a certidão de óbito da esperança", causou intenso barulho quando foi lançada, em 1949. Caiu como uma bomba sobre os destroços de um mundo degolado pela Segunda Guerra. É um dos pontos altos da obra de um escritor e dramaturgo fantástico.
Sua violenta riqueza reside tanto no conteúdo quanto na forma. Beckett representa a falência da narrativa; depois que passou como um furacão, não apareceu ninguém que competisse com sua força, suas imagens espetaculares e sua ousadia de narração. Seu absurdo levou a dramaturgia às últimas conseqüências.
A peça traz dois vagabundos - Vladimir (Bete Coelho) e Estragon (Magali Biff), Didi e Gogô na versão de Villela - que vão todos os dias ao pé de uma árvore, à beira de uma estrada, esperar Godot. A partir da conversa entre os dois vamos mergulhando num universo de ceticismo e desolação. A descrença, com uma crueldade ímpar, cresce em direção à asfixia.
Tudo há de melhorar com a chegada de Godot, dizem. Ele resolverá os problemas. Mas e se ele não vier? Eles esperam. Não há opção. Ele há de vir, e isso basta - tem que bastar.
Em ambos os atos Didi e Gogô são interrompidos pela visita de Pozzo (Lavínia Pannunzio), que proclama ser o dono daquelas terras. Ele é acompanhado de Lucky (Vera Zimmermann), preso por uma coleira. É uma das imagens mais fortes de todo o teatro contemporâneo.
Por fim, ainda há a visita de um mensageiro, perto do final de cada ato - também interpretado por Vera. Ele é a ponte mais próxima entre os vagabundos e Godot.
O resultado, frente à grandeza do texto, é decepcionante. A visão impressa por Villela consegue tão somente sumir com toda a ironia e o humor presentes no original. Este é pretendido, aqui, pela encenação, e reduz consideravelmente seus limites. A peça fica melancólica, fria, opaca. Não há jogo - elemento tão caro a Beckett - entre os personagens.
É triste ver o alto nível técnico do elenco comprometido com uma proposta equivocada. Magali, como de praxe, impressiona em um Gogô que aparece como o personagem mais elaborado. Sua expressividade comove, é de uma poesia rara. Já Bete patina em um Didi - como bem apontou Sérgio Coelho, na Folha - próximo de uma Emília, de um Pierrot Lunaire.
Lavínia encarna um Pozzo clownesco, estilizado, que pouco tem a ver com os "palhaços" de Beckett. Eles são metafísicos, sua condição emana da linguagem. O da montagem, por sua vez, tende à obviedade. Já o papel de Lucky está muito mais bem caracterizado, pela bela Vera. Seu monólogo, sob às ordens de Pozzo, é perfeito, fiel retrato da proposta beckettiana. Seus mensageiros também aparecem com correção, cheios de si.
Difíceis de justificar, também, são os cortes e alterações feitos no texto. O primeiro ato termina de uma forma abrupta, beirando a pressa. No segundo ato, Lucky não volta. Seu chapéu, porém, está lá, sugerindo uma interação. Tais opções nada conseguem senão empobrecer o conjunto.
Por fim, é sensível uma dinâmica estranha ao texto. Os silêncios, em Beckett, são tão importantes quanto as falas. Sobretudo em Godot, em que a espera sufoca, asfixia, oprime. Magali é quem consegue imprimir esta atmosfera com mais precisão; sua manipulação do cigarro é meticulosa, esmerada, renegada. Há no geral uma certa pressa, uma ansiedade indevida.
O resultado, pois, deixa a desejar. Teremos que esperar um pouco mais até vermos um Godot à altura de seu legado.
Para ir além
Esperando Godot - SESC Belenzinho / Subsolo - R. Álvaro Ramos, 915 - Belenzinho - Tel. (11) 6602-3700 - R$ 15,00 (ingressos esgotados) - Sexta a domingo, 21h - Até 26/03.
Nota do Editor
Leia também "Vida besta".
Notas
* Voltou ao Espaço CPT, no SESC Consolação (R. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. (11) 3234-3000 / R$ 20,00 / Sábado, 21h, e domingo, 19h / Em cartaz por tempo indeterminado) o interessante espetáculo O Canto de Gregório, de Paulo Santoro. A direção é de Antunes Filho, e no elenco estão, entre outros, Arieta Corrêa, Juliana Galdino, Emerson Danesi e Marcelo Szpektor. Ele trata de Gregório, um homem assolado por dúvidas acerca de suas escolhas e ações. É possível ser realmente bom? Entre seus interlocutores, estão personalidades como Jesus Cristo, Sócrates e Buda. Note o controle preciso de Antunes sobre a construção dos personagens. Um texto inteligente, bem humorado e irônico.
* A Cia. São Jorge de Variedades completa oito anos de vida com uma mostra de seu repertório no Centro Cultural São Paulo (R. Vergueiro, 1000, Liberdade, tel. (11) 3277-3611, r. 221 / R$ 12 / conferir programação no site). Em cartaz atualmente está a peça Pedro, o Cru, um retrato rasgado e extremamente irônico do episódio da coroação de Inês de Castro após a sua morte, por El-Rei D. Pedro. Uma peça sobre o amor e sobre a obstinação. Vale a pena conferir a vibração de uma companhia que embarcou com tudo no projeto do espetáculo. A direção é de Georgette Fadel. Até o final de maio, a companhia apresentará ainda Biedermann e os incendiários, As Bastianas e Um credor da Fazenda Nacional.
Guilherme Conte
São Paulo,
22/3/2006
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