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Quarta-feira,
5/4/2006
Um Brecht é um Brecht
Guilherme Conte
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Assistir à montagem de Um homem é um homem, de Bertolt Brecht (1898-1956), pelo grupo Galpão, é dar-se conta da atualidade de sua obra. A história do homem que é desconstruído e reconstruído como soldado possui uma força que pode levar a crer que foi escrita ontem. Óbvio que a adaptação - até um pouco exagerada - do grupo, capitaneada pelo diretor Paulo José, reforça essa constatação. Mas a essência e o sentido brechtiano são de uma lucidez ímpar.
Brecht notabilizou-se por um teatro refinado e de alta qualidade, marcadamente político, com um gosto pelo humor e pela música - fontes que muito o aproximam do cabaré. Suas críticas ganham charme e vigor pelo riso, pela caricatura. E não há melhor forma de se atingir ideologias e práticas do que pelo riso.
Um homem é um homem trata da história de Galy Gay (Antonio Edson), um pacato carregador de mercado, incapaz de dizer "não" a alguém. Ele sai de casa para comprar um peixe, enquanto sua mulher (a impagável Inês Peixoto) bota a água no fogo. Um dia como outro qualquer, na cidade de Dagbá.
No meio do caminho, porém, carrega as sacolas da Viúva Leokadia Begbick (Simone Ordones), dona da cantina do acampamento do Exército. Ela o persuade a comprar de si um pepino, ao invés do peixe.
Ao mesmo tempo, soldados da Primeira Cia. de Metralhadoras assaltam o templo de um monge, nas cercanias da cidade, em busca de dinheiro para comprar bebida e drogas. Como um de seus homens se perde na atrapalhada incursão, eles têm de achar alguém para se fazer passar por ele e evitar a corte marcial.
É aqui que as histórias do Exército e de Galy se cruzam. Este é inicialmente convencido a fraudar a chamada - mediante um pagamento em uísque e charutos. Depois, é arrastado em uma série de acontecimentos que culminam em sua desconstrução enquanto Galy Gay, e reconstrução como Jeriah Jip, um soldado sedento por sangue.
O texto de Brecht é rico em ironias e piadas excelentes. A adaptação de Paulo José consegue, em muitos momentos, dar vivacidade à obra. Esse é um expediente muito utilizado por grupos que encaram a obra do dramaturgo alemão, e caro à sua própria concepção do teatro. Ele próprio mexia e remexia no texto em sucessivas montagens, visando buscar uma maior aproximação com o público.
E as mudanças são muitas. No original, a história se passa na Índia, e o Exército é britânico. Aqui, os militares são americanos e preparam-se para ocupar a cidade de "Dagbá". E, piada das piadas: a guerra é "preventiva". Alguma semelhança com o noticiário? Na mesma esteira, as referências brechtianas aos hindus aqui dizem respeito aos vietnamitas.
Outra mudança substancial é no objeto que é vendido por Galy Gay, em dado momento da peça, e que causa discórdia. No original, é um elefante. Paulo José o troca por uma "galharufa", e escorrega numa referência para lá de óbvia ao transformá-la em uma "arma de destruição de massa" disfarçada. (Em tempo: "galharufa" é uma antiga gíria do teatro: seria um amuleto, um patuá dado de um ator experiente para um jovem em sua estréia.)
A graça causada pelo uso do elefante no texto original, o impacto pelo inusitado, se perde em uma piada reducionista. A impressão que se passa é que houve um certo espírito didático por trás da concepção da montagem. Com receito, talvez, de não passar a mensagem ao público, a adaptação aproximou demais o texto de uma realidade nossa, palpável.
É uma pena, pois grande parte do humor de Brecht se perde em substituição a um riso fácil, previsível. A platéia ri, muitas vezes, de caras, bocas, rebolados. A piada pela piada - e se distancia da intenção original do autor. A caricatura suplanta a ironia. Com isso, sai-se do teatro sem se tocar plenamente nas questões levantadas por Brecht. Aquela impressão de que faltou alguma coisa.
No geral, o ritmo da peça segue um pouco apressado, o que compromete a própria audição do texto. Os tempos, porém, tendem a se acomodar melhor à medida em que o espetáculo amadurece.
Reservas à parte, nada que comprometa o belo espetáculo que o Galpão oferece. Assistir ao grupo é um verdadeiro privilégio. Os mineiros do Galpão - sob a direção do lendário Paulo José, ator e diretor com uma longa lista de bons serviços prestados ao teatro -, com 23 anos de carreira, são sinônimo de excelência.
Os atores são excelentes, inclusive como músicos, e se destacam como força de grupo, mais do que talentos individuais, embora alguns se destaquem naturalmente: Inês Peixoto faz uma Sra. Galy Gay que rouba a cena, mesmo aparecendo bem pouquinho. Simone Ordones, como a Viúva, também está ótima, assim como o Galy de Antonio Edson. Elogios também ao cenário de Alexandre Rousset e Thereza Bruzzi, bonito e criativo, e para o figurino de Kika Lopes.
Pode comprar o ingresso tranqüilo, seguro de que terá um espetáculo de qualidade pela frente. Aquém, no entanto, das possibilidades do texto e do que o próprio Galpão já mostrou que é capaz de fazer. Bom, mas não memorável.
Para ir além
Um homem é um homem - Teatro SESC Anchieta - R. Dr. Vila Nova, 245 - Consolação - Tel. (11) 3234-3000 - R$ 30,00 - Quinta a sábado, 21h, domingo, 19h - Até 23/04.
Notas
* Volta aos palcos de São Paulo, agora no SESC Paulista (Av. Paulista, 119 / Tel. (11) 3179-3900 / quinta a sábado, 21h, domingo, 19h / R$ 15 / Até 23/04) o ótimo espetáculo O que seria de nós sem as coisas que não existem, do ótimo grupo LUME, de Campinas. O texto é inspirado numa fábrica de chapéus do início do século XX, e por meio de depoimentos constrói uma fábula sobre a tentativa de se construir o chapéu perfeito. Muitas lembranças surgem desse processo. "Partimos da realidade para criar ficção", conta o diretor Norberto Presta. As atuações são sensíveis e esbanjam graça e leveza, com um humor elegante. Se não tem o mesmo brilho de Café com queijo, pérola do grupo, é um espetáculo que prima pela poesia.
* Os Satyros estrearam sua mais nova criação, Anjo do Pavilhão 5, em cartaz no seu espaço 2. Com texto de Aimar Labaki, é a primeira das duas montagens do projeto "Bárbara ao quadrado", que no segundo semestre trará uma criação do dramaturgo e jornalista Sérgio Roveri. Baseado no conto Bárbara, de Dráuzio Varella, traz algumas histórias do finado presídio do Carandiru. Impressiona pela crueza e pela violência, que dão pistas sobre a vida dentro da penitenciária e sobre a própria condição humana. Ivam Cabral se destaca, como a própria Bárbara, embora um pouco exagerado. Espetáculo irregular, mas vale a visita.
Guilherme Conte
São Paulo,
5/4/2006
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