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Quinta-feira, 15/6/2006
Sombras Persas (VIII)
Arcano9
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Dança? Arte marcial? Malhação? Eis o Zurkhaneh

Yazd, 6/11

Um grupo de homens se reúne. Todos usam camisetas e bermudas, estas com estampas dessas que conhecemos dos tapetes persas. Eles estão todos dentro do que parece ser uma pequena e rasa piscina em formato circular e sem água, uma espécie de arena, dentro de uma casa em Yazd. No alto de uma plataforma, em frente à arena, o aparente líder do grupo, com um tambor e um microfone, entoa cânticos islâmicos, narrando com seus alaridos dolorosos histórias falando dos imãs xiitas. Esse sujeito estraçalha no tambor, no Brasil seria mestre de bateria de escola de samba. Ele varia os ritmos, acelera, freia, recomeça, canta mais. O som coordena o movimento dos homens. Eles não lutam entre si, como eu inocentemente esperava, antevendo alguma espécie de arte marcial. Eles pulam ao ritmo dos cânticos. Eles fazem movimentos com a cabeça, para frente, para trás, em círculos. Os minutos passam e o aquecimento acaba - um deles, de bigode, olha de relance para mim e para as cerca de 30 pessoas observando atentamente a cerimônia. Começam as reais proezas.

É difícil explicar o que é o Zurkhaneh. Esse espetáculo praticado exclusivamente por homens é uma tradição vista como esporte no Irã. É melhor chamá-lo de manifestação cultural, por mais vago que isso possa parecer. Em uma tradução livre, Zurkhaneh significa "casa do poder" ou "da força". A primeira proeza que vejo é com as garrafas, e garrafas que explicam a necessidade de força por parte dos homens à minha frente. Não há água ou Coca-Cola dentro delas. As garrafas são de madeira maciça, parecem pinos de boliche, grandes, sólidos e bem pesados. Pergunto e me falam que os maiores (com meio metro de altura) pesam vinte quilos ou mais. Com duas garrafas, uma em cada mão, os homens fazem movimentos com os braços, desenhando círculos imaginários no ar com os cotovelos, com os objetos sendo trazidos e puxados por sobre o ombro. A garrafa é lançada sobre a cabeça, quase toca os omoplatas, e é trazida de volta para frente. Os movimentos são coordenados para evitar que os pesos em cada uma das mãos se toquem durante suas trajetórias. A princípio, o exercício parece fácil, mas o grupo faz isso sem parar, ao ritmo do tambor, por uns bons dez minutos. De vez em quando, gritam algumas palavras, como se elas fossem para incentivar a eles mesmos e aos outros a continuar. Alguns param brevemente durante o exercício. Outros não fazem pausas.

O cheiro de suor rapidamente chega à platéia (a maioria turistas, mas também iranianos) sentados ao redor da arena, e a sensação que eu tenho é que estou vendo um bando de marmanjos malhando numa academia e, o pior, achando interessantíssimo. Depois das garrafas, os homens formam uma roda e como se estivessem em transe, começam, cada um a sua vez, a rodar como piões no meio da arena. O ritmo dos tambores fica mais rápido, e mais frenético, e eles rodam. E rodam, e rodam, e rodam, e rodopiam, e dão voltas, rotações, translações, fazendo voar gotículas de suor, aumentando a velocidade, mais rápido. Você começa a respirar naturalmente no mesmo ritmo dos tambores. Você começa a contrapontear o ritmo com momentos em que você prende a respiração. O homem agora no centro está rodando tão rápido que daqui a pouco alça vôo. Outro, no seu turno, fica tão tonto que quase cai, sendo resgatado no último segundo por um colega. No canto da sala, vejo um dos praticantes que deixou a arena. Ele se deita no chão e ergue duas placas de madeira de formato retangular, grandes, grossas e aparentemente pesadíssimas, acopladas com algo para que possam ser seguradas com uma mão cada uma. Um, dois, um, dois: o sujeito as ergue em direção ao teto e as traz junto ao peito. Faz isso dez, vinte, cinqüenta vezes. Depois, um outro homem deixa a arena e agarra um objeto estranho que estava num canto. Trata-se de um arco de metal de mais de um metro de comprimento com uma corda, também metálica, em que estão presos minipratos como os de um pandeiro. O arco, diz a guia, é uma representação da arma usada pelos arqueiros da antigüidade e pesa 15 quilos. O sujeito o ergue, balança, faz movimentos rítmicos com ele. Meu braço dói só de ver.

Aparentemente o grupo que eu estava vendo se reunia toda a semana, como uma irmandade secreta, para praticar seus movimentos de força. Eu havia feito amizade com duas senhoras espanholas que estavam visitando a cidade com uma guia iraniana fluente (muito fluente) no idioma de Cervantes (sem nunca ter saído do Irã). Perguntei a uma das espanholas o que elas acharam e ela me disse, sabendo que eu era brasileiro e tendo ela visitado o Brasil uma vez, que o Zurkhaneh lembra a capoeira. Sem dúvida há um aspecto cerimonial, de ritmo e movimentos quase como de dança, que lembra muito o espetáculo com o berimbau. Mas, aqui, não há luta, só manifestações de virilidade. "Às vezes fico triste quando trago os turistas aqui", me disse a guia. "Um grupo me disse que não tinha gostado, que tinha achado entediante. O que eles esperavam? Isso é que é popular por aqui". Pensei: no Irã há tanta coisa radicalmente diferente do que vemos na Europa ou na América que o turista se acostuma mal a esperar o chocante. O que eles esperavam? Provavelmente um espetáculo de antropofagia, ou sei lá. Mas o que encontram no Zurkhaneh é uma curiosa mistura de brutalidade animal e sutileza. Quando finalmente termina o show, os praticantes sorriem, apertam as mãos, beijam-se e se abraçam, prometendo se encontrar de novo para a próxima sessão. Parecem ter saído de um transe.

* * *

Me perco na cidade de lama. No centro velho de Yazd, as casas são todas cobertas com a massa bege, curtida e endurecida ao sol, sem rachaduras. As casas todas se parecem, o olho logo se acostuma a ver as coisas em tons da mesma cor: naquela praça tinha uma parede de bege mais escuro, ali tem um muro em que o sol bate e o bege é esbranquiçado, o chão está sujo e o bege é cinzento. Não sei se o barro é misturado com concreto, se é constituído de uma argila mutante que ganha a consistência de granito quando seca. Só sei que a cor é a mesma há décadas, há séculos, nesta cidade. Malcolm Napier viveu em Yazd no início do século XX.

"Muitos dos yazdis (cidadãos de Yazd) até comem barro e desenvolvem feições barrentas, não saudáveis. A habilidade do yazdi em manipular a lama é além do acreditável. Às vezes você os vê nas ruas fazendo barris para guardar grãos."
Malcolm Napier em Cinco Anos em um Vilarejo Persa, 1905

Nas ruas que me engolem como se eu fosse uma iguaria curtida no sol, o ar é seco, mas limpo. Imaginava uma cidade cheia de particulas de areia ao vento, mas não me acanho em respirar fundo tentando encontrar meu caminho de volta a algum lugar conhecido. Para o perdido nas ruelas como eu, só há duas referências de verdade. Mas são referências que se repetem em toda parte, no céu e nas profundezas, e que são o guia definitivo para entender como esta cidade pode existir no meio do deserto.

No céu, há os badgirs. Trata-se de pequenas torres instaladas em muitas das casas da cidade velha, as da população mais abastada. As torres, que lembram minitemplos gregos com minicolunas dóricas, são na verdade a parte mais visível de um engenhosíssimo sistema de ar condicionado primitivo. O vento no alto é canalisado pela torre, que o direciona a uma poça de água fresca. Continuando sua trajetória, já frio, o vento encanado segue para as salas e quartos da casa. Há casas que tem até mais de um badgir. À distância, dos mirantes de Yazd, as torres dão um ar mágico à cidade ocre, como se fossem as residências dos anjos. Anjos que protegem os moradores do calor aterrador nos meses de verão.

As residências dos anjosNa terra, há os qanats - longuíssimos túneis subterrâneos, construídos pela primeira vez há cerca de dois milênios, que canalizam água das montanhas mais próximas a Yazd e alimentam a população. O qanat só funciona nesta cidade por causa das feições subterrâneas da região onde está a cidade. O lençol de água que alimenta os túneis debaixo da terra precisam estar a um nível mais alto do que o local onde a água será coletada, e esses lençóis são encontrados nas montanhas. No Irã há cerca de 50 mil qanats, os mais longos superando os 40 quilômetros de extensão. Andando pelo centro histórico de Yazd, algumas vezes você encontra longas escadas que vão até perder de vista até as profundezas da terra, levando a um braço seco ou não de um antigo qanat. São locais escuros, sinistros, misteriosos. Portais para o inferno e, ainda assim, portais para a vida, a sobrevivência. Esse mundo de sombras é genuinamente um orgulho para os moradores e, visitando a principal mesquita da cidade, há jovens que abordam os turistas se propondo a levá-los para conhecer os túneis. Malcolm Napier:

"Há uma coisa que um yazdi coloca acima de tudo, e isso é o suprimento de água de sua cidade. Eu pessoalmente me dei muito bem com os yazdis, embora eu tenha admitido que não admiro Maomé e sua religião. Mas outro europeu que abertamente não aprovava a água deles, teve sucesso em alienar completamente suas afeições."

* * *

Depois de tentar navegar no centro velho usando todos os pontos de referência disponíveis, virei à direita em um badgir e à esquerda numa ruela perto de um qanat e finalmente reencontrei uma das avenidas principais da cidade. Ela me guiou para uma das jóias arquitetônicas de Yazd, o complexo Amir Chakmaq. Ao contrário do que se poderia esperar de um prédio tão imponente - com sua fachada de três andares de concavidades decorativas, que são iluminadas lindamente à noite - o complexo não tem nenhuma utilidade religiosa. Seu único uso é como palco para um pequeno e decadente mercado. O complexo também tem um dos melhores mirantes da cidade, onde observo o sol se pôr lentamente e sinto a velha melancolia que me acompanha todas as vezes em que estou prestes a me despedir de uma cidade. Amanhã viajo para Isfahan.

Devagar, volto para o hotel, subo as escadas com preguiça, como uns doces, tomo um banho e ligo a TV. Estranhamente para um país tão afastado dos Estados Unidos, todos os dias, às 23h, um canal aberto transmite um noticiário de 15 minutos em inglês. Os apresentadores falam um inglês quase perfeito. A editorialização do conteúdo do noticiário também é quase irretocável, tendo em mente a falta de liberdade de expressão neste país. Quase todos os dias há notícias de palestinos sendo mortos não por soldados de Israel, mas por "soldados sionistas" e "forças sionistas". Não é de se estranhar também a cobertura de declarações de Hugo Chávez e Fidel Castro, presentes quase diariamente no boletim.

Depois do noticiário há, em outro canal, um "telecurso de teologia islâmica", uma preciosidade extremamente bem produzida, também na língua dos inimigos americanos. Há até um segmento jovem. Num cenário completa e absolutamente branco, branco OMO, temos uma mocinha com uns quilinhos a mais, com seus óculos e seu sorriso. Sorriso níveo, deslumbrante, e roupa, completa, com o obrigatório véu, também da cor da neve mais pura do alto das montanhas Zagros. Meus olhos já estão doendo de tanta imaculada luz e, antes mesmo que eu lembre que não tenho óculos escuros na mochila, ela começa a falar. Sua voz tem um pique completamente diferente do senhor que, antes dela, apresentava um outro segmento do programa. Ela é alegre, é jovial, é mais rápida. Não tem nenhum sotaque iraniano - fala um perfeito inglês da costa leste dos Estados Unidos. "Você sabe que uma das coisas mais legais na vida é se unir a Alá", diz ela, bem sorridente. "E há muitas formas de a gente agradar Alá, e é tão divertido. Você pode estar com seu pai e sua mãe e louvar Alá. Com seus amigos, também. É fácil". O anjo de sorriso intermitente agora explica como louvar Alá, como cumprir os cinco pilares do Islã, como rezar. "Se junte a mim, vamos juntos refletir sobre os ensinamentos do Profeta, isso é importante", continua, um pouco mais séria, e agora fechando os olhos para se concentrar melhor. As explicações da jovem parecem beirar, a cada segundo, uma risada sonora de alegria que ela nunca dá. Fico esperando também que ela se levante e dance de felicidade, exploda de alegria e abraçe o cinegrafista, mas ela também não faz isso. Só sorri e repete como tudo é divertido. Muito divertido! Por que tanta alegria, minha querida? Seu salário é bom aí na TV? Ela não responde, continua suas explicações. Quando finalmente termina, fico com sua voz ecoando na cabeça, estou febrilmente contaminado por um desejo de lavar todas as minhas roupas e tomar três banhos com água sanitária, só por diversão. "Viu só? Louvar Alá é fácil. Não é divertido?", despede-se a musa.

Você me ensinou, linda gracinha branca: O que o mundo precisa é se divertir. Maomé, Jesus, Zoroastro, todos devem estar dando boas gargalhadas, onde quer que estejam.


O complexo Amir Chakmaq é uma das jóias de Yazd

(Continua...)


Arcano9
Londres, 15/6/2006

Quem leu este, também leu esse(s):
01. O palhaço no poder de Luís Fernando Amâncio
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03. O primeiro assédio, na literatura de Marta Barcellos
04. Leitura, curadoria e imbecilização de Ana Elisa Ribeiro
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