Você está em uma grande livraria, prestigiando o lançamento do novo livro de um amigo. É uma manhã de sábado, e a movimentação de pessoas na livraria é grande.
É necessário dizer que você é um leitor compulsivo e, se fosse possível, leria e compraria ao menos um livro por semana. No seu quarto, os livros estão amontoados, quase sem ter mais lugar. A proporção de livros lidos versus a de livros comprados, folheados e não-lidos, é de 40% a 60%. Sua vontade é ler todos os livros do mundo, coisa que jamais fará, sabe disso, mas finge não saber. E, mesmo com tantos títulos para ler, você continua a comprar e comprar.
Justamente por isso você passeia pelas estantes da livraria em busca de um bom título por um preço justo. Afinal, a situação não está pra brincadeira, e a sua grana anda curta. Lembrando que você tem uma lista de prioridades devidamente arquivada num arquivo de texto no seu computador e, de memória, procura alguns deles, porque você saiu às pressas, como sempre faz, e esqueceu de anotar o nome dos livros em uma folha de papel.
Metido a alternativo, só encontra dois livros da tal lista, da qual você lembrou de alguns poucos títulos, pois sua memória não é das melhores. Um deles está caro demais. O outro já está em suas mãos, pois só há um exemplar na estante e você não pode perdê-lo.
Mas você não quer levar apenas um livro. Ao menos dois, até para poder parcelar no cartão de crédito. A desculpa é sempre essa. E assim você sempre dá um jeito de "levar mais uma coisinha". Seus olhos percorrem, famintos, as prateleiras. Você vai pra um lado, vai para o outro, pega um livro, pega outro, mas nada ainda lhe fisgou.
É quando seus olhos se deparam com um de capa vermelha, com o título e o nome do autor em letras pretas e brancas, respectivamente. Ora. Vermelho, preto e branco. As cores do seu time do coração, que só pode ser o São Paulo Futebol Clube.
Trata-se de Livro dos Homens (CosacNaify, 2005, 176 págs.), de Ronaldo Correia de Brito. Você o retira da prateleira e percebe que se trata de mais uma belíssima edição da editora CosacNaify. Na contra-capa está escrito:
"A justiça de Deus tarda, mas não falha. A dos homens tarda e falha. Com firmeza e coragem, ela podia ser apressada. O nome de Oliveira estava registrado no livro dos homens, na paróquia onde foi batizado. Honrasse o livro ou nunca mais voltasse para casa".
Você se interessa em saber mais sobre o livro e parte para ler a orelha dele.
A seguinte frase lhe deixa de boca aberta: "Posso afirmar sem erro que este é um dos livros mais importantes de que tenho notícia nesses últimos anos".
Quem afirma isso é Marco Lucchesi, de quem você já ouviu falar - e muito bem. Aliás, fica sabendo, também pela orelha (do livro), que o autor tem outro volume de contos bastante elogiado. Trata-se de Faca, publicado em 2003 pela mesma editora.
E então você resolve comprá-lo. Não sem antes pedir a opinião do seu amigo escritor que está lançando um livro. Ele recomenda sem pestanejar.
Dois meses depois - porque você tem muitas leituras acumuladas, lembra? - você inicia a lê-lo. Gosta muito dos contos, que são lidos rapidamente. O quarto conto, em especial, ficará marcado em sua memória.
"Brincar com veneno" é o título dele e, na sua opinião, é o melhor conto que já leu.
Depois de algum tempo, você termina de ler o livro. Está surpreso e contente por ler uma obra tão boa. Por ser um aspirante a escritor e por colaborar com alguns sites literários, pensa em fazer uma resenha sobre Livro dos Homens e entrevistar seu autor, para publicar em algum deles.
É possível que consiga.
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Chove na maioria dos contos de Livro dos Homens. E neles, alguém morre ou está prestes a. Mas não é ela - a morte - o assunto principal dos contos de Ronaldo Correia de Brito.
O assunto principal, dois, na verdade, são os homens e suas histórias. É o corpo de um homem (morto) encontrado às margens do rio Jaguaribe e que faz a população de uma cidade inventar para ele uma vida heróica, atribuindo-lhe até realização de milagres; é a espera de dona Eufrásia Mendes pelo marido, que se encontra resolvendo pendências com "o que veio de longe"; é a perseverança de Maria Antônia, que parte em busca de sua avó a pedido de seu pai recém-falecido e acaba resultando na doença seguida de morte ou recuperação milagrosa do marido, o leitor decide.
Todos os contos têm a mesma qualidade: excelentes. Podem dizer que a literatura de Ronaldo Correia de Brito é regional, mas não é. Muito pelo contrário. Sua literatura é universal. Suas histórias podem acontecer em qualquer lugar, com qualquer um.
"Brincar com veneno", merece uma menção honrosa, mas não resumirei sua história. Digo apenas que é um conto belíssimo, de qualidade ímpar. Merece ser lido e relido, sempre, como todos os outros contos de Livro dos Homens.
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* O amigo em questão é Mayrant Gallo, escritor baiano, que na ocasião lançava seu livro Dizer adeus, de contos, pela Edições K.. Mayrant Gallo tem publicado O inédito de Kafka, também de contos, pela CosacNaify, além de outros livros de contos e poesias.
Muito bom, Rafael. Você acabou escrevendo um pequeno conto sobre todos nós, ratos de biblioteca (ou livrarias). Não foi você quem comentou que os livros nos escolhem? Quero dizer, os livros que lemos. Nada mais certo. É assim mesmo. Ótimo texto.