Ana Luiza (voz) e Luis Felipe Gama (piano) são (mais) dois dos novos bons talentos a serem descobertos da nova música nacional. Têm como característica trabalharem com freqüência juntos; mais do que um participar de projetos do outro, parecem buscar uma real parceria musical. E não olham apenas para o próprio umbigo: em seus trabalhos também apresentam diversos outros bons talentos, sejam instrumentistas ou novos compositores. No começo de setembro fizeram show de lançamento de seu novo trabalho juntos, Linha D'Água, num Tom Jazz bastante cheio. Acompanhando-os estavam dois ótimos instrumentistas: Alberto Luccas (contrabaixo) e Sérgio Reze (bateria).
Linha D'Água teve sua maior parte gravada em 2001, com um registro adicional em 2002 e outro neste 2006. Mas só conseguiu ser lançado neste ano, mesmo, via Guanabara. São as dificuldades enfrentadas por quem procura fazer uma música um pouco, digamos, mais elaborada e sofisticada (o que não significa nem um pouco música chata ou "enjoada", diga-se), mas não só isso. O mercado da música está cada vez mais confuso, com novos formatos, novas formas de acesso, um quase infinito leque de opções de escolha. E, em geral, seja num mercado de massa ou até mesmo em muitos segmentos indies, o que se escolhe é o mais fácil e o do momento, muitas vezes até por uma questão de sobrevivência financeira, infelizmente. Outro "empecilho" (mas só para o mercado) é que o disco é propositalmente longo e praticamente não há pausa entre as músicas - elas quase que se entrelaçam. Isso pode ser um desafio para o "momento mp3" pelo qual passamos: o disco exige atenção do ouvinte e várias audições - quem tem paciência pra isso? Mas não significa que é um disco "difícil"; talvez até seja pelo tamanho, mas não pelas músicas, que são bastante palatáveis - e pensadas e executadas com muito apuro. O disco apresenta canções de Luis Felipe Gama - só ou em parcerias - e diversos outros compositores, alguns mais conhecidos como Renato Teixeira ("Amora"), Milton Nascimento e Márcio Borges ("Viola Violar"), Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Chico Buarque ("Modinha/Retrato em Branco e Preto") e outros nem tanto, como Rodrigo Zaidan e Luciano Garcez ("Linha D'Água") e Juliana Amaral ("Primeiro Dia").
Inevitável fazer comparações entre o show e o disco. As músicas soaram melhor ao vivo e não há demérito algum nisso: é até normal, pois elas estão mais "redondas", já que - como dito anteriormente - a base do disco foi gravada em 2001; além disso, há a evolução musical dos dois, com destaque para Ana Luiza, com significativo amadurecimento. Novamente, isso não significa interpretação ruim no disco, muito, muitíssimo longe disso. Mas ver Ana Luiza ao vivo é fantástico, sua voz apresenta contornos e profundidade não tão evidentes em disco. E a apresentação começou num fôlego excelente, abrindo com a bela "Linha D'Água" (ainda mais intensa ao vivo), continuou com a deliciosa "Viola, Violar" e seguiu com "Juliana" (Luis Felipe Gama). Entre as músicas não presentes no disco, mas apresentadas no show, destaque para uma versão entre o lúdico e o apuro técnico de "Sonho Meu" (Yvonne Lara e Délcio Carvalho); a excelente "Dias de Amores" de Juliana Amaral, que, diga-se, é uma promissora compositora, apresentada também em Linha D'Água com outra ótima música, "Primeiro Dia"; e uma nova canção, ainda sem nome, com uma melodia bastante encrencada, que Ana Luiza (que dividiu com Marcelo Pretto o prêmio de Melhor Intérprete do Festival Cultura de 2005) tirou de letra, numa impressionante demonstração de apuro técnico.
Tanto no show como no disco um dos grandes destaques é a canção "Depois do Sonho", parceria de Guinga com Luis Felipe Gama. Essa música já aparece no disco de Guinga Noturno Copacabana, mas sem letra; em Linha D'Água é sua estréia como "canção" (letra e música). Em Noturno Copacabana já havia outra parceria de Guinga e Luis Felipe Gama, a genial "Silêncio de Iara", cantada (brilhantemente) por...Ana Luiza! Não custa repetir que esta foi a canção que fez Chico Buarque voltar à música - chamou-a de "a música do século". O que mais, afinal, dizer sobre Guinga? Nada! Basta ouvi-lo. "Depois do Sonho" é um Guinga "clássico": surpresas harmônicas e melódicas permeadas de emoção e delicadeza. À primeira vista pode parecer meio "torta", como muitas de suas canções; porém, basta uma segunda, no máximo uma terceira audição e a música já se torna absolutamente confortável a qualquer ouvido, proporcionando altas doses de prazer. Ela ficou linda ao vivo, com o piano de Luis Felipe Gama, mas no disco tem o colorido do inigualável violão de Guinga - quem sabe numa versão definitiva (intérpretes, façam-me estar errado)?
Linha D'Água prima pela delicadeza e introspecção; há sempre a busca das sutilezas, dos coloridos, da diversidade de contornos - leves ou mais robustos; mesmo em músicas mais vigorosas como "Tô Fora" (Natan Marques) ou "Ninho de Vespa" (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro) não há agressividade em excesso ou gratuita. Ana Luiza e Luis Felipe Gama também não parecem preocupados em ser "complexos" ou forçadamente diferentes; ao contrário, parecem sempre à procura da interpretação mais adequada, dentro de suas concepções e escolhas estéticas, para cada canção. Enfim, mais do que tudo, buscam "simplesmente" (nunca é tão simples) a canção, seja no formato que for: numa abordagem mais direta, como em "Bacia das Almas" (Luis Felipe Gama e Mauro Aguiar), concisa em seus 1:55 minutos ou na mescla da canção com passagens instrumentais como em "Linha D'Água". Outros destaques do disco estão nas participações nas gravações de Natan Marques (violão, guitarra, viola caipira e vocais, em geral conhecido por ter acompanhado Elis Regina), Renato Teixeira (voz em "Amora") e o já citado Guinga. Além das músicas já comentadas, há outros diversos destaques no disco. Entre elas as compostas por Natan Marques, como as fabulosas "Valsa" e "Suportar Esse Amor" (ambas em parceria com Luis Felipe Gama), "Cajaíba" (Haroldo Oliveira) e "A Cidade e a Serra" (Luis Felipe Gama e Luciano Garcez).
Em recente matéria na Folha (só para assinantes) Ana e Luis contam das dificuldades em lançar o disco. Diz ela: "O mais triste é que até gente que gostou muito desse CD disse que precisávamos fazer uma coisa mais acessível. Até parece que os artistas que fazem concessões estão vendendo 50 mil discos". Carlos Calado, autor da matéria, ainda sublinha, um pouco depois: "Ouviram elogios, viram pessoas se emocionarem ao ouvi-la, mas não conseguiram um acordo. Nem os elogios que Chico Buarque e Guinga fizeram a trabalhos da dupla ajudaram.". Ana Luiza completa: "Alguns desses selos usam raciocínio de major para atender um público que gosta de música brasileira alternativa. É um pensamento meio careta que persegue um formato radiofônico". É necessário repetir que o mercado da música passa por um momento turbulento, com muitas perguntas e poucas respostas; um mercado que apresentas novas e antigas dificuldades tanto para as majors quanto para as indies. Mas uma pergunta fica martelando: quem está errado nesse mercado independente? Onde estão os erros e quais são eles? Por que um lindo disco como Linha D'Água pode levar cinco anos para ser lançado? Por que um disco como esse que faz jus à melhor tradição das canções brasileiras e que, acima tudo, apresenta canções e não exibicionismo e pedantismo de músicos fica à margem do mercado? Será que a culpa é dos músicos? Será que o público é tão burro assim? Será que as gravadoras são tão burras assim? Será que os críticos é que são os burros? Ou qualquer outra coisa? Caro leitor, cara leitora: tirem vocês suas próprias conclusões.
O problema também é muito do consumidor de música, que lê críticas boas como essa, e não procura saber mais sobre o disco, ouvi-lo e, quem sabe, comprá-lo. Óbvio que a indústria tem uma parcela maior de culpa, mas nós também temos nossa parte.