...a bem da verdade e a bem da mentira - o ramal está congestionado entre esses pólos opostos - um sem número de frases desarticuladas, uma palinfrasia de bêbados em final de festa. O retrato mal pendurado de Dorian Gray está lá, com sua cortina parcialmente roída pelos ratos noturnos e deixa entrever o sorriso sarcástico entre os panos mambembes; e o retrato fala e sua voz é ouvida por milhões e o som de sua voz permanece como um murmúrio constante.
Astrônomos identificaram esse ruído circundando o cosmo conhecido, a "radiação de fundo", querendo com ela provar o fato espantoso de que o universo teve origem numa espécie de cataclismo invertido, do nada para o todo; e o danado se expande, vai além dos limites da capacidade imaginativa - porque não dá para imaginar o infinito - e aquele que tentar atingir esses limites está fadado à loucura, como as fadas dessa história que, antes de perecer, enlouqueceram, naqueles reinos de sonho, com a invasão dos homens-ogro que multiplicaram a realidade até o insuportável... (sic)
Achei esse trecho escrito quando eu procurava alguma outra coisa num caderno velho. É parte de uma carta (que nunca foi enviada) e na qual eu explicava (ou tentava explicar) para um amigo as maluquices de um conto, meio ficção científica, que eu tinha escrito e que tinha deixado esse meu amigo meio perplexo. Desisti de enviar a carta porque, ficou evidente, ela teria aumentado a perplexidade dele (ou a de qualquer um) e eu estava mesmo era querendo explicar a coisa claramente - eu e ele havíamos lido ao mesmo tempo O Tao da Física e, se não me engano, o livro do Caos (não me lembro o nome corretamente). Ele ficou estranhamente deprimido, eu escrevi um conto. Ele leu e vociferava ao telefone, na longa conversa que tivemos depois que eu desisti da carta e tentei me explicar verbalmente. O princípio científico da incerteza estava deixando ele maluco.
Bem, talvez seja necessário dizer que esse conto já era, se perdeu de alguma forma - eu só tinha um original, escrito a mão. Ainda me lembro da história, mas não vem ao caso. O que vem ao caso é a palavra "perplexidade". Lembro a do meu amigo e, agora, a minha, ao notar que a carta que eu escrevi há tempos serve perfeitamente como mapa para definir algumas questões, que eu acho que são boas, sobre outro tema, insuspeitado naquela época: a internet e os podcasts.
1. ...a bem da verdade e a bem da mentira - o ramal está congestionado entre esses pólos opostos...
Uma expressão inócua (a bem da verdade) refutada pela sua forçada contraparte. A quantidade de informação disponível hoje na rede excede, e muito, toda a informação fora dela. Mas, evidentemente, não é cem por cento confiável. O único filtro possível é o uso constante de milhões de usuários que descartam a maior parte da informação falsa ou duvidosa. O equilíbrio é mantido na práxis porque se, por algum motivo, todo mundo se desinteressasse do valor da informação como "verdade", a rede se rompia, dava um tilt com o acúmulo exponencial de lixo. É quase uma questão de ética: "a procura da verdade" ou a zona de credibilidade é que mantêm a rede funcionando.
2. ...um sem número de frases desarticuladas, uma palinfrasia de bêbados em final de festa. O retrato mal pendurado de Dorian Gray está lá, com sua cortina parcialmente roída pelos ratos noturnos e deixa entrever o sorriso sarcástico entre os panos mambembes; e o retrato fala e sua voz é ouvida por milhões e o som de sua voz permanece como um murmúrio constante.
Na medida em que qualquer um pode criar seu podcast - e o número deles está crescendo na rede -, temos aí essa voz, esse murmúrio contínuo na internet.
O apelo principal do podcast, a propaganda que atrai tanta gente, é que você pode criar sua própria "rádio" - e é exatamente isso que muita gente tem feito: criar um programa de áudio, como numa rádio qualquer, que outros internautas possam acessar. E uma vez acessado, isto é, uma vez que o internauta visite uma página de podcast, existem basicamente duas maneiras de ouvir o programa: pelo jeito normal, clicando em teclas play e ouvindo na hora, via stream; ou fazendo um download e gravando o programa em sua máquina para ouvir quando quiser.
A outra maneira (e aí é que está a coisa) é fazer uma "assinatura": o internauta conecta seu iPod, por exemplo, e automaticamente as atualizações do programa que ele assinou estão lá. Ou pode fazer isso pela própria rede: existem sites, (ou softwares na rede) que atualizam constantemente as informações oriundas dos podcasts e as tornam disponíveis, bastando que o internauta vá a esses sites, sem ter que passar pelo processo de ir até onde está o seu programa de rádio, baixar os áudios etc. Ou seja, o ouvinte da "rádio" se mantém em sintonia com o que ela (rádio) produz. Isso implica em uma flexibilidade inédita para ambas as partes, principalmente para o produtor da "rádio" que pode mudar e alterar seus programas, pode criar seqüências legais, sabendo que seus ouvintes estão "ligados".
E isso atrai gente e todo tipo de manifestação. Posso supor qualquer tipo de áudio; provavelmente ele existe ou existirá: discursos nazistas de Hitler no inferno, o canto das sereias de Ulisses, música de Jobim psicografada por médium japonês, aulas secretas para ninjas e o som dos canhões da Guerra do Paraguai.
Há também um lado meio sinistro em tudo isso porque da mesma forma que você ouve um programa de "sublimes e elevadas orações" nada impede que ouça também um ótimo programa que ensine a fabricação de bombas caseiras, com um mínimo de custo, mas capazes de detonar um quarteirão.
O retrato de Dorian Gray, o retrato da "alma", não só de um sujeito, mas de todos, sorri meio sarcástico (a palavra correta seria "zombeteiro") e não há como desfazer esse sorriso porque a liberdade - e nada é tão livre como o organismo da internet - é uma caixa de Pandora, aberta, e solta indiscriminadamente anjos e demônios.
3. ... Astrônomos identificaram esse ruído circundando o cosmo conhecido, a "radiação de fundo"...
... porque não dá para imaginar o infinito - e aquele que tentar atingir esses limites está fadado à loucura, como as fadas dessa história que, antes de perecer, enlouqueceram, naqueles reinos de sonho, com a invasão dos homens-ogro que multiplicaram a realidade até o suportável.
A "radiação de fundo" é uma espécie de estática detectada no éter cósmico e causada, dizem os cientistas (nem todos dizem), pelo Big Bang, a explosão primordial que criou o universo etc. A internet (com aqueles três "www" que poderiam significar também whole wide world) é também um cosmo - dá vontade de escrever microcosmo, mas micro já deixou de ser e macro ainda é pouco - e tem sua radiação de fundo, esse fluxo massivo, áudio-visual, que é o chamariz principal para os peixes que navegam, ou melhor, que caem na rede.
Ora, áudio-visual é o contato com a realidade, com o mundo material, ou seja lá que nome tiver. Leitura, apesar dos olhos, não é áudio nem visual.
No meu antigo conto tinha essas fadas que eram meio princesas de torres silenciosas e que foram sumindo à medida que os ogros barulhentos ocupavam os arredores. Os ogros, esses eram estritamente áudio-visuais. Berravam, usavam roupas berrantes e não há nada como barulho para fazer alguém acordar, botar os pés no chão, nem que seja de susto. Com isso os ogros trouxeram um senso de materialidade que as pobres fadinhas não suportaram.
Sou da espécie das pobres fadinhas e escuto o barulho que vem da rede com certo desconforto. Mas, não resistindo à piadinha, sou um pouco mais fodinha do que elas foram e percebo que a maior parte desses ogros também não são lá grande coisa. Esses podcasts todos fazem bastante barulho mas são, em sua maioria, divertidos. O negócio é saber discernir até onde eles se conectam ou influem sobre a realidade, ou mesmo se podem criar o que seria também uma voz para essa realidade.
Sou leigo nesses assuntos, mas não entendi uma coisa. Se o universo está em expansão, não seria errado dizer que ele é infinito? Como poderia aumentar o que já é infinito? Acho que seria mais conveniente usar a palavra perpétuo...