Atividade comum em vários países, o resgate da memória através das páginas de revistas e jornais é algo ainda pouco visto por aqui. Portanto, é muito satisfatório encontrar um livro como Pena de Aluguel (Companhia das Letras, 2005, 392 págs.), de Cristiane Costa. A autora faz um belo trabalho ao escrever a história da relação entre a literatura e o jornalismo no país. O livro procura responder como esses dois ramos foram se encontrando com o desenvolvimento da imprensa no país e como a produção numa área vem influenciando a outra. Afinal, será que o trabalho de um escritor como jornalista pode influenciar a forma como este escreve literatura? Será que o escritor, trabalhando na imprensa, faz melhorar a qualidade dos jornais? As perguntas servem apenas de mote a uma deliciosa viagem no tempo, onde encontramos desde personalidades do início do século XX - como Machado de Assis, José de Alencar, Monteiro Lobato -, até nomes recentes da literatura brasileira - como Bernardo Ajzenberg, Bernardo Carvalho, Cíntia Moscovich, Luiz Ruffato, Marçal Aquino, entre tantos outros -, que falam sobre os cruzamentos que ocorrem entre esses dois caminhos. No livro, encontramos os escritores como personagens que refletem sobre questões que envolvem trabalhar nas duas áreas.
Pena de Aluguel na verdade retoma uma enquete similar feita por João do Rio no início do século, quando os jornais davam um tratamento à literatura bem diferente ao dado hoje. Na época, escritores como Machado de Assis e José de Alencar possuíam um espaço para publicação de livros através do folhetim. Além disso, críticos como José Veríssimo dividiam suas análises na primeira página dos jornais com o próprio editor. Mesmo assim, preocupações como o tempo gasto nas atividades dum jornal, que para alguns poderia "matar" o escritor, e a utilização da linguagem jornalística, uma linguagem que muitos classificavam - e que alguns classificam até hoje - como inferior, que poderia "contaminar" a linguagem artística, foram questões discutidas já naquela ocasião. Isso sem contar a questão financeira, onde muitos artistas consideravam um terror venderem seus textos, fazendo perder assim sua aura artística, para um meio preocupado tão somente com algo considerado mesquinho chamado lucro. O efeito é a divisão entre escritores de prestígio e os malditos. Enfim, questões que foram lançadas no início do século XX e que permanecem atuais, como a autora nos mostra de modo perspicaz.
A atualidade das questões envolvendo a relação jornalismo-literatura faz a autora avançar até os nossos dias e procura ouvir de nossos contemporâneos o que eles acham das questões levantadas no início do século. Afinal, houve alguma mudança no modo como o lado escritor se relaciona com o lado jornalista? As respostas são variadas e o livro traz alguns comentários a respeito do levantamento, mostrando não somente uma evolução no modo como a questão é tratada pelos artistas - que já não vêem mais a literatura dum modo tão sacralizado, mas como um trabalho -, mas também uma evolução do próprio artista que se aproxima cada vez mais das editorias culturais e se afasta das outras. A íntegra das entrevistas com esses autores contemporâneos podem ser acessadas no site do projeto, um brinde que a autora carinhosamente nos oferece.
Outro grande mérito do livro é o modo como fala da evolução da mídia impressa brasileira, sua crise atual e como os blogs têm sido responsáveis por mudanças significativas nos principais veículos do país. Desde que a imprensa abandonou o modelo francês de jornal mais opiniativo e adotou o modelo americano de jornal meramente informativo, a linguagem utilizada no meio também sofreu grandes mudanças. Sendo assim, como o escritor patinou nesse novo terreno? No livro reconhecemos que apesar da introdução do lide e do modo como a imprensa vem trabalhando a notícia até hoje (permitindo ao leitor ler tudo o que interessa no primeiro parágrafo) poder representar um empobrecimento na visão de alguns, houve um enriquecimento literário dos jornais através da evolução da crônica. Essas mudanças culminam no modo quase anárquico com que o texto é tratado nos blogs, tornando o leitor parte do processo de veiculá-lo, por disponibilizar um espaço para sua opinião através das caixas de comentários e por permitir o uso de links para disseminá-lo. Ou seja, o livro nunca faz um julgamento monocromático das questões levantadas, mas permite ao leitor reconhecer um perfil nessa evolução que se caracteriza por pontos positivos e negativos. Em resumo, um dos poucos livros que faz um trabalho tão abrangente e que pode ser enfaticamente recomendado a todos os que se interessam pelo assunto.
Lançamentos recentes que resgatam o passado através da republicação de textos críticos veiculados por importantes jornais e revistas do país provam que esse passado merece ser recuperado. Livros como os da coleção de quatro volumes organizados por Heloísa Seixas, entitulada As Obras-Primas que Poucos Leram, uma reunião de textos valiosíssimos da antiga revista Manchete, de nomes como Otto Maria Carpeaux, Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony, dentre outros, provam justamente isso. A leitura do livro Pena de Aluguel serve portanto de estímulo para que cada vez mais as editoras possam tratar dum modo mais adequado os textos de grandes autores que foram veículados através dos jornais. Para nós leitores, o cruzamento entre jornalismo e literatura é mais um baú de tesouros a ser descoberto e explorado. Tesouros de palavras.
Concordo com você. Estou preparando o projeto para uma futura tese sobre jornalismo literário e o livro Pena de Aluguel me abriu vários horizontes. Agora o difícil é achar um foco diferente do que já foi dito ali... Minha cabeça fervilha reflexões, hipóteses. O jornalismo me parece cada vez mais pobre, em linguagem, em conteúdo. A literatura sumiu dos jornais, lamentavelmente...