COLUNAS
Quarta-feira,
1/11/2006
Guimarães Rosa no Museu da Língua Portuguesa
Tais Laporta
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O mundo particular de Grande Sertão: Veredas (1956), do mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967), está exposto em uma sala árida de 480 metros quadrados. De portas abertas em São Paulo desde março de 2006, o Museu da Língua Portuguesa dedica todo seu primeiro andar a esse enigma em forma de livro. E mostra aos visitantes que a saga do jagunço Riobaldo não é impenetrável, dentro de uma proposta que funde linguagem e arte. O espaço caminha tão bem, que foi considerado o primeiro museu do mundo dedicado exclusivamente a um idioma. Agora, homenageia o primeiro escritor a reinventar a língua de um país.
Organizada pela curadora Bia Lessa, a exposição coincide com os 50 anos do livro (leia as Colunas do Especial Guimarães Rosa). Logo na entrada, a atmosfera convida a sentir o clima do sertão: cores cruas e texturas ásperas no chão, nas paredes e nas janelas. Algo que lembra o som de um vasto campo ressoa nos fundos, quase imperceptível. Mas o que prevalece é o carnaval de letras espalhadas por todos os cantos. De perto, elas ganham sentido. "A linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade, não vive". São os esboços do escritor, dispostos com todo cuidado das formas mais criativas.
A íntegra do manuscrito de Grande Sertão, com correções feitas a mão pelo autor, desce do teto em cartazes ampliados. Os tijolos, os vidros e a terra vermelha, todos merecem uma inscrição grafada pelas palavras de Guimarães. No fundo de latões enferrujados, a narrativa dança debaixo d'água. O lixo caótico também abriga trechos do livro. Até os banheiros completam a mostra, com comentários em vídeo de Paulo Mendes da Rocha, Antonio Candido e Décio Pignatari. As 14 últimas páginas do livro são narradas pelo timbre de Maria Bethânia. É assim que a exposição tenta chamar a atenção do visitante para o universo longínquo e desconhecido do sertão. Dentro dele, um mundo ainda mais profundo: o da linguagem como nunca se viu.
Nos rabiscos em caneta, nota-se a obstinação do autor por um vocabulário perfeito, que encaixasse a outros na medida exata, como em uma equação matemática. Apesar da profunda abstração da sua narrativa e da liberdade com que fundia palavras de diferentes classes gramaticais, não faltava lógica nessa ciência vocabular. Isso explica, talvez, porque os leitores de Guimarães parecem ter voltado de uma longa viagem. É como se desbravassem uma selva intocada, que só a obsessão máxima pela linguagem é capaz de permitir. Tanto que Grande Sertão é considerada uma obra mais do que prima.
Ou, então, um oceano de conhecimento. "Falo: português, alemão, francês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, da sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do finlandês, do dinamarquês; (...) E acho que estudar o espírito de outras línguas ajuda muito à compreensão do idioma nacional. Principalmente (...) estudando-se por divertimento, gosto e distração." Palavras do autor, em uma entrevista concedida a uma prima.
Embora muitos duvidem que alguém possa ter tanta capacidade no "HD", as anotações originais do escritor confirmam que é possível. Em uma delas, ele coloca em ordem alfabética todas palavras que lembra da língua japonesa. E a lista não é pequena. Guimarães brincava de inventar linguagens com vocábulos estrangeiros e era capaz de passar dias "construindo" o melhor título. A narrativa também era desenhada, geometricamente, em função do tempo, do espaço e dos personagens.
Dessa engenharia literária, nasceram, entre outros, os livros Saragana (1946) e Primeiras Estórias (1962). Este último é o mais indicado para iniciantes - consagrado como o terror do vestibular - com narrativas mais curtas (contos), mas não menos densas. As temáticas escolhidas para "A Terceira Margem do Rio", "A Benfazeja" e "O Cavalo que Bebia Cerveja" beiram o absurdo e, por isso, alcançam o patamar do realismo mágico, um gênero que conquistou a simpatia do público a partir dos anos 50.
Mesma época, aliás, em que os latinos despontavam com clássicos que marcariam as gerações futuras. A começar pelo argentino Jorge Luis Borges, com o psicodélico Ficções e pelo colombiano Gabriel Garcia Márquez, que levou o Nobel de literatura pelo monumental Cem anos de solidão, em 1982. Entre outros, Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar e Carlos Fuentes também se destacaram. Assim como Guimarães, todos narraram a fronteira entre o fantástico e o real. Mas nosso brasileiro só não alcançou as massas e a popularidade internacional por razões muito particulares.
Primeiro, escrevia com um regionalismo tão peculiar ao sertão, que muitos o consideraram um estrangeiro em seu próprio país. Até hoje, fazer uma tradução de Guimarães para outras línguas é um desafio inacabado. Depois, não que sua escrita seja rebuscada, mas os poucos que encaram livremente o autor, em regra, possuem alguma erudição. Guimarães não é difícil. Simples e sofisticado seja talvez a melhor definição. Por incrível que soe, sua leitura exige mais desprendimento do que inteligência e mais interesse do que preparo. Especialistas diriam que decifrá-la é permitir que palavras novas invadam o inconsciente. Ou ainda, esquecer o certo e o errado.
Assim, num instante, o estranho fica familiar. "Foi de certa feita - o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o tropel", diz "Famigerado", um dos contos mais sarcásticos do autor. Para os já leitores e os que pretendem ser, a mostra temporária no Museu da Língua Portuguesa é um belo convite ao intelecto. Também pega de surpresa os que nem sonhavam em entrar nesse mundo. Isso porque mistura, num ato inovador, literatura com artes plásticas. Se não incentiva a ler o livro, pelo menos introduz o visitante a um universo desconhecido. E não menos fascinante.
Para ir além
Exposição temporária: Grande Sertão Veredas
Museu da Língua Portuguesa
Estação da Luz - Praça da Luz, s/nº
De terça a domingo, das 10h às 18h
R$ 4,00 e R$ 2,00 (meia-entrada)
Grátis aos sábados
Tais Laporta
São Paulo,
1/11/2006
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