Desde 1982 o regime militar é matéria-prima para muitos filmes brasileiros. É o período mais doloroso da nossa história recente, época de torturas, desaparecimentos, conservadorismo, falta de liberdade. Mas é, ironicamente, uma época de conquistas (Copa de 70, crescimento econômico) e avanços no país. Lidar com este pensamento ambíguo, de um tempo ao mesmo tempo próspero e nefasto, ainda é complexo e gera confusões na cabeça de muita gente. O cinema, com seu poder de recriar realidades amplas a partir de olhares particulares, vem tentando, à sua maneira, compreender o período - ou mesmo refletir sobre ele. Pra frente Brasil, de Roberto Farias, foi o primeiro. Lançado ainda com a ditadura em vigor, mostrava o paradoxo entre os porões da tortura e a alegria dos estádios. Já tocava fundo na ferida, mas era apenas o primeiro passo.
Vinte e quatro anos depois, filmes e mais filmes foram despejados tendo o militarismo entre 1964 e 1985 como presença nos enredos. Fosse de forma direta (Lamarca, Ação entre amigos, O que é isso, companheiro?, Cabra-cega), fosse tendo o regime como contexto ou ambientação (Dois córregos, Zuzu Angel). Tudo isso para falar de dois filmes atualmente em cartaz nas salas brasileiras e cujo foco está na ditadura, cada um lidando com o tema à sua maneira - e ambos com formas muito particulares e distintas de enxergá-lo. Sonhos e desejos e O ano em que meus pais saíram de férias partem do conflito e da repressão provocados pelos militares para narrarem dramas intimistas. Colocar a dupla de produções lado a lado é sentir o quanto, por um lado, ainda existe imaturidade em relação à abordagem, e por outro é possível criar uma obra de impacto sem ao menos inserir um discurso ou sequer pronunciar a palavra "ditadura".
É isso que acontece no filme de Cao Hamburger. O ano em que meus pais saíram de férias não inclui palavrórios contra o regime e nem explicita o momento pelo qual o país passa. Porém, logo nas primeiras cenas, o espectador sente o clima pesado, a movimentação estranha de quem precisa se esconder, a angústia de pessoas que lutavam por liberdade e só encontravam feridas e mortes. O garoto Mauro é o centro da narrativa, e é através dele - mais ainda: através do olhar inocente e ingênuo que ele coloca em tudo ao seu redor - que o público embarca na trama. Hamburger arriscou deixar o filme a cargo desse menino, de seu olhar, de sua percepção ante a realidade onde está colocado. Não é preciso que surjam guerrilheiros em ação ou milicos maldosos dispostos a matar passarinhos (tal cena existe, e está no sofrível Garrincha - Estrela solitária). A cada expressão de dor, de dúvida, de anseios, tanto das crianças quanto dos adultos, sabe-se perfeitamente o que se está enfrentando.
O ano... é um filme de esperança e tolerância. O desencadeamento das cenas parece a todo instante nos levar a pensamentos simples, que serviriam para decidir positivamente o conflito em que estão os personagens: aceitar o próximo, entender a cultura alheia e enxergá-la no mesmo patamar que as outras. Somente assim a repressão pode ser destituída, e somente assim Mauro vai amadurecer e perceber que a ausência de seus pais talvez seja um sinal de que ele precisa aprender a estar entre outros, a entender a vontade de terceiros. Parece moralismo, mas aí está algo inexistente no filme de Hamburger. Através da convivência de seu protagonista com aqueles que assumem a responsabilidade de cuidar dele, o diretor fala de política sem mostrar a política. Política está nas relações, nas trocas de gestos, na interação de um com o outro. E também na ingenuidade de quem ainda não entende muito bem o que está à sua volta. Quando Mauro diz "exílio é quando o pai da gente atrasa tanto, mas tanto, que nem aparece em casa", a simplicidade da frase desmonta qualquer argumento mais politizado.
Não é nada disso que acontece em Sonhos e desejos. Primeira ficção de Marcelo Santiago, o filme se inspira no livro Balé da utopia, de Álvaro Caldas, para falar sobre um núcleo de guerrilheiros em Belo Horizonte formado por um professor universitário e a estudante com quem ele inicia um romance. Ao cuidar de determinado "companheiro" ferido, que se esconde em sua casa, a moça se envolve num jogo de sedução e cria o velho e bom triângulo amoroso que não pode acabar bem.
Para sentir as "boas intenções", já começo contando que o título do filme, que seria mesmo Balé da utopia, foi mudado porque muita gente não sabe o significado da palavra "utopia". Não, não fui eu a afirmar tal coisa. A idéia partiu da produção - a cargo de Lucy Barreto e do filho, Fábio Barreto.
Tão nobre preocupação com a compreensão do povo brasileiro ecoa a cada segundo de filme. Mais parecido com uma novelinha de quinta categoria do que um drama na ditadura, Sonhos e desejos se atenta em parecer sensual sem ser relevante, em parecer profundo sem ser autêntico. Então, seria um filme de aparências? Sim, mas se aparência denota imagem, Marcelo Santiago ignora qualquer sentido a esta acepção. O filme soa dialogado ao extremo.
Não que seja um pecado falar nos filmes. O português Manoel de Oliveira fez uma obra-prima de palavras chamada Um filme falado. Porém, quando há frases como "você parece um urso gostoso" (recitada por Mel Lisboa), algo está errado. A intenção assumida de Santiago e do produtor Fábio Barreto - a quem não se lembra, Fábio é aquele infeliz que dirigiu Bela Donna e A paixão de Jacobina - era deixar de lado a abordagem direta da ditadura e retratar uma paixão em meio à guerrilha. Pois deveriam ter se esmerado um pouco.
A ditadura está lá, como um fardo carregado pelo enredo. Todas as vezes que surgem referências à ação antimilitar, o filme tenta passar rápido e chegar logo no triângulo amoroso, como se a repressão fosse uma obrigação de roteiro, ou mesmo algo a tentar dar mais importância ao drama principal. Quando o amor floresce em cena, inquieta mais o sexo quase explícito (Mel Lisboa transa no chão, na cama e até num sonho) do que qualquer tipo de preocupação com a intimidade verdadeira desses personagens. É tudo descarado demais (e não se fala aqui de nudez, mas de falta de sutileza), como se o tesão valesse mais que a complexidade de sentimentos numa situação como aquela. Talvez quem não saiba o que é "utopia" seja mesmo a turma de Sonhos e desejos.
Não assisti a nenhum dos dois filmes mas percebo que a crítica do Marcelo Miranda é perfeita. É como se a gente tivesse visto o filme. Marcelo capta exatamente a impressão última de um espectador atento e inteligente, que faz aquela crítica (rara) que enriquece quem lê. Bons críticos são tão importantes para o cinema quanto bons diretores e atores; e o cinema nacional está sempre precisando disso. Falou, Marcelo.