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Segunda-feira,
11/12/2006
Traçar no papel é mais fácil que na vida
Vitor Nuzzi
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Em uma antiga canção, Caetano Veloso definiu o tempo como "compositor de destinos, tambor de todos os ritmos". O tempo passa mesmo. No exato momento em que escrevo, completam-se um ano e dois meses que vi o meu primeiro texto ser publicado neste Digestivo. Até hoje, é o texto mais lido, sobre Geraldo Vandré, que agora já passou dos 71 anos e cuja história ainda está para ser contada. Se não fosse jornalista, possivelmente seria pesquisador - que é um montador de quebra-cabeças, e quanto mais o tempo passa, mais distantes ficam as peças umas das outras.
Da mesma forma que violão (quanto mais você toca, mais percebe que precisa treinar), quanto mais você escreve e estuda, mais percebe que tem muito a descobrir. Vinte anos atrás, fui com um amigo a um show de Baden Powell. Esse meu amigo, que tocava violão, passou uns tempos sem chegar perto do instrumento, complexado. Chegávamos a dizer que havia um outro violonista atrás do palco, porque não era possível que alguém tocasse daquele jeito. No caso do texto, felizmente, quando vejo um bem escrito, não sinto vontade de parar de escrever. Pelo contrário: é um estímulo a mais. Ler pode ser um prazer ainda maior.
Segundo Lima Barreto, a melhor qualidade de um livro é a sinceridade. Já Graciliano Ramos disse que é preciso trabalhar muito, sem alimentar grandes esperanças. Gostaria de escrever um livro um dia; tenho até um projeto nesse sentido. Falta o biografado consentir. Mas mexer com palavras, minhas e alheias, sempre foi um prazer. Quando comecei a ler, percebi como o mundo poderia ser ilimitado e inusitado. Ao contrário da maioria dos garotos da minha idade, fiquei fascinado, como sou até hoje, por Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Por que escrever? Para explicar o mundo é que não é. Talvez para dar a nossa versão.
E descobrir o óbvio: que cada um tem a sua.
Mas percebo, no Digestivo, uma diferença fundamental entre os textos que deixo aqui e os que escrevi na maior parte do tempo, nesses últimos 18 anos, como repórter de jornal. Ao fazer nossa matéria diária - aliás, nossas matérias, porque jornalista tem uma infinidade de pautas a cumprir todos os dias -, quase nunca sabemos o que o nosso leitor achou. Sequer desconfiamos se o texto o incomodou, irritou ou emocionou de alguma maneira. Se ele nos achou esplêndidos ou ignorantes. Aqui, a chance é maior de receber uma resposta, de perceber uma reação. Sem contar os debates na seção de Comentários, que são sempre estimulantes, por mais que discordemos do argumento alheio.
O grande mérito deste espaço é reunir idéias e formatos tão variados. Mas ainda reluto em imaginar o Digestivo como um universo jornalístico. Acho que temos, ainda, mais opinião do que informação, que é a principal matéria-prima para qualquer jornal ou revista - se bem que muitas vezes vemos por aí tantas opiniões disfarçadas de notícias, mas isso é outra discussão. Já que o editor pergunta, respondo: às vezes falta informação. Pondero: tratamos de uma linguagem que ainda está se autodescobrindo.
O texto de estréia, aquele do Vandré, provocou reações surpreendentes para mim. Os comentários foram em tom mais emocional, como se eu tivesse falado de um momento simbolicamente importante para a vida de algumas pessoas. O compositor que sumiu há tanto tempo, que não faz show no Brasil desde dezembro de 1968, que se recusa a aparecer e ao mesmo tempo alimenta o seu mito, de uma hora para outra parecia mais presente do que nunca. Assim, o ponto de partida, que era o texto, tornou-se apenas um elo entre passado e presente.
Palavras são pontes.
Revejo o que escrevi ainda nos tempos da faculdade, e claro que às vezes sinto certa vergonha. Mas escrevemos o que podemos escrever. O que sabemos, vemos e sentimos. Com o tempo, sabemos mais (ou deveríamos), aprendemos a ver de outras maneiras e sentimos de formas diferentes. Tudo isso vai dentro do caldeirão da mente em que construímos as nossas formas de expressão. Claro que há riscos: ficar mais presos à vida pode nos tornar mais imunes ao viver.
Salvo engano, a primeira referência que tive sobre o Digestivo foi na extinta revista Bundas. A internet já funcionava a pleno vapor, mas ainda sem esse ímpeto avassalador de hoje. Era natural que parte do mundo das palavras migrasse para a tela. O texto impresso resistiu - e continuará resistindo.
Sei que traçar no papel
é mais fácil que na vida.
Sei que o mundo jamais é
a página pura e passiva.
O mundo não é uma folha
de papel, receptiva:
o mundo tem alma autônoma,
é de alma inquieta e explosiva.
(João Cabral de Melo Neto, "Auto do Frade")
Quem escreveu os versos acima começou a perder o interesse pela vida a partir do momento em que perdeu a visão. Não podia ver a palavra escrita.
Será que em todas as noites das vidas, há uma explicação para a verdade que se esconde atrás das gentes, à noite e na vida? Palavras também podem trazer constelações improváveis em noites poluídas. Ou não alimentar qualquer esperança, como falou um dos mestres.
Como jornalista, já não tenho a pretensão de escrever verdades. Essa é uma discussão mais acadêmica que prática. Tento apenas contar histórias, que envolvem personagens e fatos reais. O aniversariante Digestivo abriu caminho para outras histórias e personagens, que podem até existir.
Vitor Nuzzi
Rio de Janeiro,
11/12/2006
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