Vista de Big Sur, na Califórnia, registrada por Carlos Kenji em outubro de 2006
Paraíso, cada um tem o seu. Em uma visão estereotipada, pode ser um lugar perto do mar, com muita área verde, de onde se enxerga tanto o cume das montanhas quanto as ondas quebrando nos rochedos. Um espaço relativamente escondido, ainda não totalmente descoberto por hordas de bagunceiros e incorporadores imobiliários. Para o escritor Henry Miller, esse lugar era Big Sur, na costa oeste dos Estados Unidos. Pela foto ali de cima, parece que ainda é. Ao menos no que se refere à beleza do mar.
Miller morou em Big Sur depois de a Segunda Guerra obrigá-lo a voltar a sua terra natal. O lugar era habitado por poucas famílias, com propriedades distantes umas das outras e das modernidades que passaram a alimentar o sonho de consumo americano em meados do século XX. O que para alguns poderia parecer isolamento e solidão, para Miller e seus vizinhos era o tal do paraíso. Tanto que ele dedicou um livro inteiro sobre suas experiências no lugar: Big Sur e as laranjas de Hieronymus Bosch (José Olympio, 2006, 448 págs.), publicado originalmente em 1957 e com sua primeira edição brasileira lançada em 2006 pela José Olympio.
As tais laranjas do título são elementos de uma das obras de Bosch. O artista flamengo, que viveu entre os séculos XV e XVI, pintou uma versão do inferno, que seria povoado por feras, monstros e pessoas em situações de sofrimento, e do céu, em que as laranjas representam as delícias do paraíso. Big Sur seria o éden na Terra. Uma relação que, esperava eu, desse mais pano pra manga. Afinal, para uma mente como a de Henry Miller, um quadro de Bosch poderia render passagens muito interessantes.
A citação de Bosch em Big Sur deu um certo trabalho para a tradutora da versão brasileira, Sonia Coutinho, que conta, em seu blog, como esclareceu um mistério relacionado ao título da obra. Miller chama o tríptico de "The Millenium". Porém, não há registro de um tríptico com esse nome. A charada teria sido decifrada por Silviano Santiago, ao lembrar que "milênio", no sentido bíblico, significa "juízo final". Este sim é o nome de uma conhecida obra de Bosch, que representa, justamente, o inferno e o paraíso com suas laranjas.
Apesar de estar classificado como romance, Big Sur e as laranjas parece mais um conjunto de crônicas ou uma autobiografia. O autor descreve o lugar, a paisagem, a rotina diária, a relação entre os vizinhos, o estilo quase de "comuna" em que viviam. E também dá pitacos sobre criação dos filhos, defende os mexicanos e imigrantes, aconselha escritores iniciantes e reflete sobre as mudanças que vão transformando o mundo e o seu país em lugares cada vez piores.
Mas, se o paraíso é um lugar, Sartre já dizia que o inferno são os outros. No caso de Miller, ele atendia pelo nome de Conrad Moricand. A história da relação entre o escritor e o astrólogo e dândi suiço já foi publicada em volume isolado, mas também está incluída em Big Sur, com o sugestivo título de Um diabo no paraíso. Foi lá que Miller acolheu o amigo, sem saber o trabalho e as aporrinhações que iria ter. Moricand era um nobre falido, um homem inteligente, exigente, mas com sérios problemas de caráter, que vão se revelando a cada dia.
O fato de Conrad Moricand (um homem que foi amigo de algumas das personalidades mais fascinantes da Paris do início do século XX) ter realmente existido, a meu ver, torna a leitura ainda mais interessante. O mesmo acontece com a parte do livro que fala sobre Big Sur. As pessoas mencionadas já morreram ou não estão acessíveis, mas os lugares permanecem. Poder visitá-los e comparar as próprias impressões com as do autor deve ser uma experiência incrível. Big Sur talvez esteja mais povoado que na época de Miller, mas pelo que o Carlinhos disse, as belas vistas de mar e montanha continuam disponíveis para o deleite do leitor-turista.
"Big Sur" é realmente um lugar lindo, quase um paraíso. Não é sem razão que Henry Miller se apaixonou por este pedaço de terra, de céu e mar. Quanto ao quadro de Bosch e as laranjas, Henry já podia sentir na pele e no coração os ecos do paraíso e do inferno. A pintura de Bosch estava no lugar e no momento certo. Da mesma forma que Miller foi acolhido por Nin, assim recebeu Moricand. Assim é a vida, e é no dia a dia que os espinhos aparecem, e as rosas florescem. Cada vez mais admiro a pessoa comum, o gênio, a sinceridade e a ousadia de Henry Miller. Não sei por quê, mas me faz pensar em Maria Madalena, que muito amou com o coração, com a alma, onde seu corpo foi a exteriorização desse amor. Miller apenas se antecipou no tempo, e como já disse um famoso filósofo, quem se expõe demais, causa estranhamento, repulsa ou é tido por louco. Quem aguenta a verdade?