Mexendo nas minhas estantes - os livros indisciplinados como membros de uma gangue preguiçosa - encontro o pequeno volume, meio rasurado, marcas do tempo sujando a lombada, pequenos rasgos nas pontas e com aquele desenho do menino vestindo uma espécie de fardão da Academia Brasileira de Letras (aquelas famosas aquarelas, tão melhores que tanta coisa por aí).
Faz muito tempo que não o seguro nas mãos; me falta coragem - o pequeno livro atraiu para si o desprezo maciço de intelectuais fajutos (mas intelectuais de qualquer forma) e, pior ainda, de humoristas-intelectuais que apreciam mais, digamos, um Nelson Rodrigues. Através desses caras fomos informados que todas as "misses", todas as moças (que eles gostariam de jogar numa cama) leram na vida esse único livro e choram de emoção só de enunciar o título.
O pequeno Príncipe (Agir, 2006, 94 págs.) gerou uma tsunami de lágrimas que varreu o planeta, desde que foi lançado pouco antes do final da Segunda Guerra Mundial. O poder desse relativamente pequeno manuscrito é assustador: intelectuais se sentem extremamente desconfortáveis olhando para o garotinho louro cuja aparência é uma síntese de todos os símbolos "burgueses" da ternura: cachecóis, pantalonas, sapatinhos delicados, bochechas rosadas, cabelos louros levemente desarrumados; anjinho, em suma. Principezinho. E de lambuja todo o simbolismo do sentimentalismo explícito, aquelas flores, aquelas estrelas, a solidão, o vento, suspiros, a morte que rodeia em silêncio um amor puro (sic) que não terá tempo de se realizar, a gente pressente, não terá outra chance. Mas o texto é bom. É infernalmente bom, é uma areia movediça. A gente afunda fácil. A única alternativa para não ser absorvido é ler depressa, passando os olhos e mantendo em mente que aquilo é piegas mas, se vacilar, se abrandar a marcha, o piegas nos pega.
O texto força a construção de barricadas constantes contra o mar de lágrimas que, se bobear, acha a fresta e rompe o dique. Quem não tem dique nenhum alegremente se afoga, vai a pique. O tom é pausado, grave, reflexivo. Existencial (é francês, n'est pas?). Saint-Exupéry nos deixa malucos porque se move livremente num sentimentalismo que, a experiência nos diz, é paralisante. Era pra ser. Toda breguice é ruim porque, entre outras coisas, paralisa o discernimento; mas Saint-Exupéry sobrevoa seu deserto bizarro e o faz de uma altura considerável. Daí resulta uma situação meio paradoxal na leitura do Pequeno Príncipe: aquele sentimentalismo todo é quase impessoal.
Algumas cenas memoráveis (resisti à palavra "antológicas" porque são passagens em que o contexto é fundamental, não podem deixar o livro, fugir da obra e respirar separadamente), como o diálogo do pequeno, sentado no alto das ruínas de um muro, no meio do deserto, com a serpente. Através do narrador ouvimos apenas as falas do menino e, juntamente com o narrador, ficamos aterrorizados ao perceber que o pequeno negociava, com uma serpente, a passagem de volta ao seu planeta longínquo, ou seja, negociava a própria morte.
E as ilustrações, as aquarelas simples (e quase simplórias) de Saint-Exupéry conseguiram cristalizar com uma propriedade rara o que o livro tem de apelo emocional. Como disse um velho amigo, a gente tomando umas e vendo um álbum de formatura onde ele reconhecia algumas antigas namoradas, ele já meio tonto, "são shurikens (lâminas em forma de estrela) lançados por um ninja malvado, bem no coração". As ilustrações de Saint-Exupéry caberiam nessa categoria. A imagem não é de todo má.
Quantas vezes li O pequeno Príncipe? Umas cinco ou seis, a maior parte delas antes de chegar a adolescência. Depois veio a "idade crítica da razão", mas o eco da voz de Exupéry é profundo e também facilmente identificável em "n" produções de quinta categoria, josés mauros de vasconcelos, paulos coelhos, fernãos capelos gaivotas e similares que, inclusive, deram sua decisiva contribuição para deturpar, talvez de modo irreversível, o charme do original.
O pequeno Príncipe deflagrou uma onda de lugares-comuns - que se tornaram comuns depois dele - sobre relacionamentos e coisas tais, mas que não são, na verdade. Há, pairando por ali, uma sabedoria real que os dissipa.
E eu consegui uma fórmula pessoal para enfrentar o problema do Pequeno Príncipe: me concentro no fato de que é literatura fantástica, quase uma ficção-científica, no final das contas. Um homem perdido num deserto encontra um pequeno alienígena que encarna, por um exercício misterioso de cósmica e profunda bondade, sua (desse homem) própria infância. Um homem marcado para morrer se encontra consigo mesmo, na sua pureza original, num lugar ermo da Terra. Sabemos que o lugar existe (o Saara), mas não como está no livro. Ali é um deserto visionário, o que restou dos Jardins do Éden, com suas criaturas mitológicas, a raposa, as rosas e a serpente, um poço de água fresca com balde e roldanas; um deserto transformado numa espécie de paraíso pela presença do pequeno ser que veio de outro planeta. Naquele pequeno alien o homem vê o reflexo de si mesmo - e de todos os homens que um dia foram pequenos e príncipes em seus minúsculos e breves domínios.
As questões pertinentes a essa revelação são aquelas que estão discutidas no livro, escrito exatamente antes do fim da Segunda Guerra, quando então Antoine de Saint-Exupéry era capitão e piloto de aviões. Fazia reconhecimentos aéreos e morreu em sua última missão, em 1944, aos quarenta e quatro anos de idade, velho demais para o rock'n'roll ensurdecedor dos combates e jovem demais para morrer. Seu corpo nunca foi encontrado e eu quero crer que o livro, escrito (ou publicado) um ano antes, tenha sido uma premonição do que seriam seus últimos momentos - e quem poderia morrer de uma maneira melhor? Ele caiu, com seu avião, em algum lugar deserto e seu principezinho veio e o levou.
É, fico aqui quebrando a cabeça para poder falar algo sem dizer besteira ou muita besteira, mas vc tem o dom de mexer com as nossas cabeças com textos enxutos e bem escritos como esse.
Incrível como um olhar para uma estante de livros desarrumada pode gerar um artigo inteligente, com uma visão diferenciada sobre um livro tão criticado, até por quem não o leu, talvez fruto da ignorância, machismo, ou só porque a inteclualidade de botequim junto com a esquerda festiva o taxou de "livro das misses"... O Pequeno Príncipe voltou à moda com a peça encenada pela Luana Piovani que cortou os cabelos para se assemelhar ao Príncipe; fico com o original, que tem como imagem um sorriso franco e inocente, não sorri com a boca torta dos pedantes. Guga, se fosse tivesse sido miss e loura, não conseguiria ganhar nenhum título, mesmo tendo lido o livro umas cinco vezes, porque vc pensa e escreve muito bem. O povo quer saber: quando sairá o primeiro livro? Se já o escreveu, não o conheço.
Li o Pequeno Príncipe ainda criança. O seu bom artigo lembrou-me da solidão e da inquietude que senti sem saber muito o que eram na época... As aquarelas eram realmente incríveis e penso agora nos detalhes. Acho que, na verdade, poucas coisas foram e são originais. Os sentimentos se repetem nas pessoas, daí os clichês. Mas o mérito do livro está, também, na sua abrangência, no montante de emoções que ele provocou e provoca.
Guga, ii hoje teu texto sobre a pirâmide e gostei muito, concordo com a tua lista, mas também lembrei de vários outros para incluir. Aí cheguei neste texto sobre o pequeno príncipe e gostei mais ainda. Tentei apresentar aos meus filhos muitos títulos, mas só a menina, agora com 22 anos, leu O pequeno príncipe e agora mesmo estava me ajudando a convencer uma sobrinha, de 10 anos, a ler o livro. Ainda não conseguimos, mas tenho esperanças. Só para atualizar notícias sobre o autor, dá uma olhada neste site. O avião foi encontrado em 2003, mas todo mundo continua dizendo que nunca foi encontrado. Virou um tipo de lenda urbana, que todo mundo sabe e continua repetindo, mesmo com novas provas. Um abraço, Irene
Tentei resistir a comentar, Guga, mas não deu. O livro é um dos que releio quando preciso de afeto (ninguém é de ferro) e sempre encontro encanto; parece que o príncipe pequenino me pega pela mão e sai a levar pela fantasia... A flor é mais humanizada do que ele, imaginação pura, uma mistura de sabedoria e inocência totalmente arrebatadora, representando a eterna busca de sentido pra vida. Por não suportar as exigências e vaidades da sua rosa, tão humana rosa, foge dela, para então descobrir que a ama, do jeito que é, quando já não pode mais amá-la. Me faz perguntar se amor é sempre algo monstruoso ou impossível. Mas adoro a negociação com a serpente: "Teu veneno é do bom? Estás certa de que não vou sofrer muito?", como se ela fosse responder a verdade, ou pudesse fazê-lo. E fico feliz por ele ter morrido (ele morre mesmo?), porque tenho a certeza de que não foi corrompido. Fecho o livro sentindo que o final foi feliz, a pureza foi preservada. Muito bom! Parabéns!! Com ternura, Cristin
Esse artigo é realmente muito bom. A estória d'O pequeno príncipe se enquadra em uma linda história: a da minha vida, onde sou a rosa e tenho um pequeno príncipe. Daí tudo que leio a respeito desse livro, positivamente, me cativa ainda mais pelo meu príncipe. Obrigada