Charles Kiefer nasceu com nome estrangeiro e sangue brasileiro em Três de Maio — a cidade, não a data —, no interior do Rio Grande do Sul, em 1958.
E apesar de Kiefer ter mais de 30 livros publicados, só no início de 2006 foi que ouvi falar no escritor gaúcho. Justo eu, quase um garimpeiro de bons livros e autores, que adora descobrir um romance ou escritor muito bom e pouco conhecido, para sair recomendando por aí. Pois agora, depois de ler o seu Valsa para Bruno Stein (Record, 2006, 240 págs.), considero uma grande injustiça não ter conhecido, anos atrás, a literatura de Charles Kiefer. Duas grandes injustiças, aliás. Uma, com ele, que não foi muito citado em 2005 nas páginas sobre literatura que acesso na rede. A outra injustiça foi comigo mesmo: afinal, só recentemente tive contato com a prosa deste escritor gaúcho. Ponto para a Taís Laporta, que escreveu aqui sobre Kiefer em julho do ano passado e me fez definitivamente correr atrás de algum livro do autor.
Eis que, pouco tempo depois, o Julio (infalível editor deste Digestivo) me envia o citado romance. A edição de Valsa para Bruno Stein que chegou até mim é parte do projeto da editora Record de relançar, nos próximos anos, toda a obra do escritor. Bem como os próximos livros que Kiefer escrever.
Valsa para Bruno Stein foi publicado originalmente em 1986. E essa informação, a de que o romance tem mais de 20 anos de publicado é, ao mesmo tempo, assustadora e excitante. O livro foi publicado quando o autor tinha apenas 28 anos (sendo que o autor começou a escrevê-lo com 26 anos de idade).
(Se eu escrever um único romance em minha vida e ele for do mesmo quilate de Valsa para Bruno Stein, morrerei imensamente feliz).
O assustador disso é que, se esse romance é tão bom e tem tanta qualidade, o que pensar dos livros posteriores a ele, escritos por um Charles Kiefer mais experiente? E isso é que é estimulante: fica a vontade de ler mais livros do autor. Ainda mais quando se sabe que Kiefer é muito exigente consigo. Tanto que retirou de circulação, no fim dos anos setenta, três livros que havia publicado, por considerá-los de pouca qualidade literária.
A história do romance em questão se passa na segunda metade da década de oitenta. Bruno Stein e sua família — esposa, filho, nora e netas — vivem no interior do Rio Grande do Sul, onde Bruno mantém uma olaria. Homem de hábitos tradicionais, Bruno é do tipo que condena a televisão e seus "programas inúteis" e se recusa a modernizar a fábrica.
"— Precisamos modernizar — dizia-lhe o filho.
— Sei o que faço — respondia agressivo. — Fosse por você, eu e sua mãe estaríamos num asilo."
Um homem rústico, enfim. Com seus avançados setenta anos de idade, Bruno Stein não quer descansar tão cedo. "Não, enquanto ainda conseguisse caminhar, não entregaria o posto. O que não queria era ficar entrevado, à mercê da solidariedade alheia, ser um peso morto para a família." Muito pelo contrário. O oleiro faz questão de acompanhar de perto a produção da pequena (por vontade de Bruno) e tradicional, olaria. Todos os dias ele visita o galpão onde seus três empregados produzem os tijolos e faz questão de ajudá-los e orientá-los, muitas vezes de maneira ríspida, a fazer as coisas do seu jeito. Um homem com desejos a serem saciados, como o do sexo, que a esposa Olga recusava dizendo que "isso não é coisa para velhos como nós." Desejo esse que é intensificado quando Bruno vê, por acidente, sua nora Valéria nua ao sair do banho. A partir dessa noite, nem Bruno nem Valéria serão os mesmos.
O oleiro entra em uma tempestade de conflitos, onde a fé em Deus (ou o medo d'Ele?) e a vontade da carne digladiam por meses. No caso de Valéria, a fé não é problema, mas sim o fato de desejar o pai do próprio marido. Em quem ela joga a culpa, é claro, pois não é ele quem vive viajando e a deixa sozinha na fazenda? Valéria se pergunta onde estará o marido atencioso e carinhoso do início do casamento e não encontra respostas. E ela percebe que, durante muito tempo, é Bruno quem tem sido — de maneira discreta — atencioso e carinhoso com ela. Isso faz com que a vontade de deitar-se com o sogro aumente até chegar a um ponto incontrolável.
O quase incesto e os conflitos internos dos envolvidos nele é a trama central de Valsa para Bruno Stein, mas não é a única. Caminham paralelas outras histórias, e vale destacar ao menos duas delas: a de Verônica, filha de Luís e Valéria e a de Gabriel, o mais novo funcionário de Bruno.
Verônica é a adolescente-quase-mulher que de repente se vê cansada daquela vida interiorana e resolve ir para a cidade grande. A decisão não é tomada assim, de supetão, nem é fácil de ser executada. Além de não contar com o apoio de toda a família, a garota precisa ter a coragem de deixar para trás o namorado que, caso ela continuasse a morar no interior, seria o seu marido.
Já Gabriel é um jovem que chega por acaso às terras de Bruno Stein e logo dá de cara com o oleiro, que lhe oferece um emprego, pois acabara de dispensar um funcionário. Bruno, que costuma dizer que não se engana com as pessoas, vê em Gabriel um bom rapaz, com vontade de trabalhar e bom coração — palavras minhas, por mais piegas que sejam — coisas que vão se confirmando no decorrer do livro. Aliás, Gabriel foi o personagem que mais me agradou, pela sua simplicidade, pela sua ingenuidade, pelos seus sonhos e pelo seu esforço. Essa afeição pelo personagem talvez seja culpa do próprio oleiro, que nutre um carinho especial e muito discreto pelo jovem.
Ao fim do romance, que poderia perfeitamente ter uma continuação, pois seu fim deixa em aberto o destino dos personagens — o que não é uma falha, muito pelo contrário, é maravilhoso poder imaginar e determinar o futuro de cada um — percebemos que a valsa para Bruno Stein talvez signifique aquele merecido descanso a que todo homem deveria ter direito em determinado momento da vida. O descanso tranqüilo, sem obrigações nem aborrecimentos. Mas nem de longe quero me referir à morte, muito pelo contrário. Me refiro à vida que floresce, tanto em Bruno Stein quanto naqueles que o cercam.
Connheço o trabalho de Charles Kiefer praticamente desde seus primórdios, talvez por ser gaúcho. Assim com ele, já que o amigo gosta de autores interessantes, temos outros gaúchos ótimos, não sei se conhece: Alcy Cheuiche (Ana sem terra, Lord Baccarat, O mestiço de São Borja); Laury Maciel (Noites no sobrado, Rosas de papel crepom, Pedra dos anjos); e Arnaldo Campos (A ceia do diabo). Um abraço!