Vou contra o fluxo: não fui formado pela leitura de Paulo Francis. Pelo menos não no começo. Jovem demais para ter acompanhado a sua coluna e seus textos enquanto foram publicados, só fui conhecer a imponente figura de Francis anos depois, quando já estava me interessando por cultura. Ou seja, fiz o caminho inverso das pessoas (muitas delas acabaram se tornando jornalistas, por sinal) que, através de suas colunas, descobriram as artes. Eu o conhecia vagamente pelas aparições na TV Globo (minha mãe o imita perfeitamente). Não tive a oportunidade, portanto, de chorar sua morte. Tampouco guardo os recortes de seus textos. Só vim a ter contato com seus escritos após dar os primeiros passos no mundo literário.
Aí sim. Pude descobrir que aquela figura tão falada, tão imitada e tão citada tinha uma magia. Uma magia esquisita, é verdade. Li, em um curto espaço de tempo, alguns dos livros de Francis: Waaal: o dicionário da corte de Paulo Francis, com alguns dos melhores momentos do Diário da corte, as memórias pessoais e intelectuais de O afeto que se encerra e as memórias políticas de Trinta anos esta noite. Sempre me chamava a atenção a arquitetura textual do jornalista. Estava longe, muito longe de ser o texto mais bem escrito que eu já lera. Algumas escolhas de palavras pareciam inadequadas, as construções frasais mal feitas. É fato: Francis não tinha a fluidez de um Sérgio Augusto ou de um Ruy Castro, para ficar com apenas dois. E as opiniões! Comentários depreciativos de livros e filmes que eu adorara (La Strada, sentimentalismo fácil?), comentários elogiosos de livros e filmes que eu detestara (Norman Mailer?). Aquele punhado de generalizações que, não raro, caíam na falácia mais grosseira. E os preconceitos, afirmações definitivas como "Nunca vejo filme oriental. Como dizem, meu carro empaca na fronteira leste da Europa Ocidental". E vez por outra cometia erros de informação. Não porque não soubesse os nomes de autores e personagens, e sim pela preguiça (suponho) de pesquisar e checar as informações.
Aos poucos fui começando a entender Paulo Francis. Como as melhores fábulas ou as melhores gags do cinema mudo, suas análises precisam ser analisadas como um exemplo hiperbólico, um necessário exagero, para provocarem o efeito de chamar a atenção e desviar para si os olhos alheios. Despidas desse exagero, suas opiniões fazem todo o sentido. Alguém de bom senso concorda com suas declarações sobre Paulo Maluf, para ele um "político moderno"? É evidente que não. Coisa de um reaça incorrigível, dirão alguns. Em compensação, quem, hoje em dia, quando até Lula e o PT macaqueiam o neoliberalismo, ousa afirmar que estavam erradas as opiniões de Francis sobre a importância das mudanças no sistema econômico, em busca de liberalismo, livre concorrência e ênfase na propriedade privada (hoje em dia é tremendamente fácil se assumir como conservador)? Há anos e anos atrás, Francis afirmou que o futuro do cinema brasileiro talvez estivesse nas televisões, na influência das novelas na feitura dos longas. O que é a Globo Filmes, senão isso?
Ao contrário do que pensam seus seguidores — imitadores —, o gênio de Francis não estava em vociferar um punhado em frases polêmicas — a metralhadora verborrágica que dava sinais de não ligar para quem estivesse sendo atingido por suas rajadas. Estava em fazer isso tendo a bagagem cultural para tanto, em não abrir mão da argumentação consistente, ainda que às vezes contraditória e incoerente (e quem está livre disso, afinal?). Eu sei, qualidades como essas deveriam ser de lei em qualquer jornal ou discussão mundo afora. Não são. Não há nada de particularmente corajoso em empilhar afirmações que desafiem o senso comum; há coragem em fazer isso se preocupando com o conteúdo intelectual, algo cada vez mais raro em tempos em que a leitura é cada vez menor e mais restrita e em que pululam livros sobre "como ser culto", guias picaretas que ensinam, em poucas lições, maneiras de parecer inteligente nas rodinhas de debates de festas. É impossível negar a Francis a autoridade intelectual. Você pode discordar dele, mas não dá para dizer que seus motivos para aquela opinião eram fracos ou ruins. Os imitadores, ao contrário, ficam mais felizes em incorporar a persona da figura polêmica, algo que traz um sucesso e uma projeção bem mais rápidos do que passar horas e horas trancado num quarto lendo. Quando penso em Paulo Francis, por sinal, só consigo imaginá-lo assim, empolgado com a escrivaninha empilhada de livros, e não o polemista incorrigível.
Era arrogante? Amém. Maldito seja o juquinha que resolveu que arrogância era um sentimento deplorável. Com tamanho repertório de leituras, Francis podia destilar arrogância o quanto quisesse, e nós, meros mortais, que babemos na gravata. Ele conseguia, em uma mesma nota, misturar Roman Polanski e Proust, Henry James e Bergman, Wagner e Freud. Tinha defeitos, claro, como alguns preconceitos sociais, étnicos e raciais, além da facilidade, como já foi dito, de cair na falácia — um problema comum a todos que abusam das opiniões decisivas. Concentrado no sonho de se tornar romancista (e na frustração de não ter conseguido), Francis talvez tenha deixado ainda de produzir muita coisa interessante. Teria sido ótimo vê-lo exercitando ensaios mais longos, inclusive com envergadura para virar livro, e também perfis, na linha de Edmund Wilson e Kenneth Tynan.
Bons tempos
Nos diversos textos escritos a respeito dos dez anos da morte de Paulo Francis, alguns, aqueles de pessoas que conheceram e conviveram com o jornalista, causaram um pouco de tristeza. Os de Ruy Castro e Ivan Lessa, em especial. Ali me bateu o sentimento de nostalgia, a saudade do que não vivemos de que falava Drummond. Eram os tempos das revistas Senhor e Diners, do jornal Correio da Manhã, do Pasquim. Eram os tempos de Otto Maria Carpeaux, Antonio Moniz Vianna, José Lino Grünewald, Ivan Lessa, Antonio Callado, Paulo Mendes Campos, Millôr Fernandes, Sérgio Porto — fora os moleques Ruy Castro e Sérgio Augusto. Autores como Guimarães Rosa e Clarice Lispector publicavam ali, em primeira mão, suas narrativas recém-escritas. Faulkner, Cortázar e Philip Roth, então pouco conhecidos por aqui, eram traduzidos. Segundo os relatos de Castro e Lessa, todo mundo recebia bem e em dia.
Francis, de certa forma, foi o último dos moicanos, a transição da época áurea em que os jornalistas eram lidos, ouvidos e, em alguns casos, temidos, para a época em que os críticos estão cada vez mais condenados a guetos. Ainda há gente fazendo crítica e jornalismo cultural de qualidade — aí estão José Castello, Luis Antônio Giron, Daniel Piza, Antonio Gonçalves Filho e Almir de Freitas, entre outros, para provar isso. Mas como a mão-de-obra de qualidade é cada vez mais rara, os grandes nomes acabam isolados em veículos diferentes, e fica difícil juntar um elenco como o da Senhor. Quantos aí se lembram do suplemento literário que a Bravo! tentou implantar há uns dois anos, com vários bons nomes, e que afundou completamente? Casos louváveis, porém isolados. A escassez de gente gabaritada (e de leitores) é tão grande que alguns jornais preferem apostar no academicismo e seus jargões.
Louvemos e lembremos Paulo Francis. Por ter feito de seu intelecto o seu grande bem. Por ter dedicado os melhores momentos de sua vida à arte e, de quebra, ter ajudado muitos outros a seguirem o mesmo caminho.
O texto me fez pensar que muitos que se interessam pelo jornalismo de Francis talvez o façam não tanto pelo que o jornalismo possibilita – mas sim pelo prazer de ir além, de exercitar o sadismo e o masoquismo, flertar com o poder, desfrutar da cultura, enfim, coisas comezinhas das quais muitos profissionais não desfrutam.