COLUNAS
Quarta-feira,
2/5/2007
De Bach a Borges, com J. M. Coetzee
Daniel Lopes
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Para alguém que conhece o J. M. Coetzee da praia da ficção, não é novidade o fato de ele ser um aficionado pela história de escritores e pelo contexto em que obras foram ou poderiam ter sido escritas - atente para a atmosfera kafkiana a envolver o personagem central do romance Vida e época de Michael K., no Dostoiévski personagem de O mestre de Petersburgo ou ao jogo em torno do clássico Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, no pequenino Foe (e quanta mágica encerra esse título!).
Mas, se alguém conhece o Coetzee da ficção, inevitavelmente criará expectativas mil ao preparar-se para ler a sua coletânea de ensaios literários, Stranger shores (Penguin, 2002, 304 págs., ainda inédito no Brasil), porque sabe que o autor, sul-africano Nobel de literatura, é especialista na arte de reinventar-se na arte de escrever. Felizmente, não há decepção aqui. Reunião de ensaios publicados na New York Review of Books e outros veículos, mais uma conferência, duas introduções e um posfácio, num período que vai de 1986 a 1999, o livro nos mostra um Coetzee à vontade ao comentar sobre escritores tão díspares quanto Amos Oz e Robert Musil. E com um texto leve, que fala de literatura com profundidade e naturalidade ao mesmo tempo, de modo que não vemos Coetzee como um professor sentado numa mesa com uma obra aberta ante os olhos e dando lições eruditas a alunos que nada entendem. A literatura como uma arte prazerosa de se fazer e se fruir.
O primeiro dos vinte e seis textos é a transcrição de uma conferência dada em 1991, na Áustria, e tem como suporte e ponto de partida uma outra palestra, do poeta T. S. Eliot, em outubro de 1944, em Londres, intitulada "What is a classic?", título que Coetzee toma emprestado. Por meio da análise do discurso, das idéias e do contexto histórico em que Eliot estava inserido, Coetzee vai expor suas próprias idéias sobre o que vem a ser um clássico.
Para tanto, na segunda parte da conferência ele irá invocar uma lembrança de sua juventude, uma tarde do verão de 1955 na Cidade do Cabo, onde, andando pelo quintal de sua casa, aborrecido com a falta do que fazer, ouve de repente um vizinho executando uma música de Johann Sebastian Bach, que lhe deixou profundamente emocionado, e nunca mais sua vida foi a mesma. Essa lembrança vem à tona porque o que Coetzee quer perguntar é: Afinal de contas, um clássico é aquela obra que é dita como tal logo após surgir, ou, pelo contrário, é aquela que, muitos anos depois de realizada, mesmo muitos anos após a morte de seu criador, é capaz de despertar num leitor ou ouvinte uma profunda emoção, independente de seu prestígio no passado?
Bach, nos lembra o palestrante, não era considerado páreo para outros músicos seus contemporâneos, sendo conhecido como um artista de técnicas ultrapassadas, com sua concepção escolástica e polifônica de música. "Bach dificilmente poderia ser considerado um clássico", diz Coetzee. "Não apenas ele não era um neoclássico, como não significou nada para aquelas gerações", a sua e as que vieram imediatamente após. No entanto, mais de dois séculos depois, uma música por ele criada foi capaz de mudar a tarde e a vida de um garoto sul-africano de 15 anos, e de milhares de outros em gerações mais recentes. Então não seria Bach um clássico, agora e sempre? Sim, embora sua elevação a esse status e sua posterior popularização se deva em grande parte ao vigoroso nacionalismo alemão que se opôs a Napoleão Bonaparte - e fez de Bach um mito.
Que não se entenda que Bach tem uma dívida impagável para com os chauvinistas alemães. Sua obra tem méritos próprios e, sendo submetida durante todos esses tempos a implacáveis análises, sobreviveu intacta. Daí Coetzee conclui que clássica, enfim, é a obra que é rigorosa e continuamente dissecada. O papel do crítico literário, musical, de teatro, cinema ou o que for não é, portanto, incensar criadores e criaturas, mas testar incessantemente a qualidade de uma criação, e só assim uma crítica pode ser considerada séria. Clássico não é aquilo que é intocável, mas aquilo que resiste a ataques.
Essa concepção é levada a cabo em todo o Stranger shores. Pegue como exemplo a leitura que Coetzee faz de Robinson Crusoe, encontrando em seu enredo a idéia que o autor Daniel Defoe fazia dos povos não-europeus: são todos bárbaros, que precisam ser domesticados pelo branco cristão europeu, como fica claro na relação entre Crusoe e seu dócil criado Sexta-Feira, um exemplo para os arredios de sua laia.
Coetzee levanta esse ponto apenas porque o vê como nítida e irrefutavelmente presente no livro de Defoe, não para fazer um ataque a este último com um libelo anti-colonialista ou algo do gênero. A visão dos não-europeus como bárbaros necessitados de civilização, de resto, era a regra no século XVIII de Daniel Defoe, mas a maioria de seus contemporâneos que compartilhavam de tal ponto de vista não tinham sua inteligência, medíocres que gastaram seus anos a classificar as civilizações em uma métrica que ia da "menos avançada" à "mais avançada" (esta, a sua, claro). A qualidade literária de Robinson Crusoe é inegável para Coetzee, e é isso que no fim importa, mais que as ideologias racistas da época. Quando é de literatura que se trata, Coetzee anota que "nada do que ele [Daniel Defoe] pôs no papel foi menos que inteligente". E ainda que julgue a obra citada inferior a outras do mesmo autor, Moll Flanders e Roxana, não deixa de recomendá-la a quem aprecia uma boa estória.
Aparece também em Stranger shores o Coetzee especialista em língua alemã, tão íntimo dela a ponto de dar puxões de orelha em tradutores de Musil e Rainer Maria Rilke. No ensaio "Translating Kafka" temos o Coetzee fã do escritor tcheco e crítico de traduções de obras suas para o inglês feitas pelo casal Edwin e Wilda Muir, e tidas como ideais durante muito tempo. Em meio a uma descrição do próprio estilo da escrita de Kafka, tantas vezes longe da perfeição, Coetzee nota como sucessivas traduções tentaram "melhorar" o texto original, em outros momentos perdendo o significado de termos nele presentes, não acompanhando sua (do autor e do idioma alemão) peculiar maneira de construção frasal, e por aí vai.
Para não mencionar o fato extremamente danoso do nosso olhar sobre Franz Kafka ser profundamente fruto dos posfácios escritos pelo seu lendário amigo Max Brod em edições póstumas. Na tênue fronteira que há nos textos kafkianos entre o terror e o cômico (lembremos que ele se divertia ao ler para amigos o manuscrito do perturbador O processo), Brod rapidamente identificou sentidos vários, como, em O castelo, um suposto desejo do protagonista K. por lar, trabalho, aceitação na comunidade e outros singelos objetivos, e não por algo mais complexo, como um auto-conhecimento que só poderia ser atingido por vias tortuosas. Ao que Coetzee liga à própria herança cultural judaica de Brod, assim como a boa recepção de sua leitura de O castelo nos países de língua alemã da década de 1950 se deve em grande parte à ânsia do público daquelas Áustria e Alemanha do pós-guerra (com economias arruinadas e Estado e Igreja sem socorrer nem a si mesmos) por um imaginário (e uma realidade) mais estáveis. Em "Translating Kafka" como em outros textos, o constante lembrete do autor para a importância do contexto em que uma obra é escrita ou lida.
Coetzee mostra um enorme interesse pela vida de escritores como Dostoiévski (o gênio epiléptico com convicções políticas camaleônicas e viciado em jogos de azar) e Borges (o anglófilo e bibliófilo acometido por uma cegueira degenerativa), e, aproveitando que resenha uma biografia sobre o primeiro e as Ficções reunidas do segundo, estende-se com notável deleite por páginas e páginas sobre os detalhes biográficos de ambos. É curioso que um Nobel de literatura e vencedor por duas vezes do Booker Prize, aclamado em todo o mundo como um dos mais importantes intelectuais vivos, ainda consiga se divertir tanto lendo e relendo seus autores prediletos e comunicando suas impressões a nós, fazendo de Stranger shores, não obstante seu ceticismo e rigor crítico, uma indisfarçável declaração de amor aos livros e a sua matéria-prima, o homem.
Para ir além
Daniel Lopes
Teresina,
2/5/2007
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