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Terror nos EUA
Terça-feira,
18/9/2001
O abismo olhou
Rafael Lima
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Não era nem um pássaro nem o Super-Homem o que cruzou os céus de Manhattan baixo demais para ser um objeto não identificado: era um avião, mesmo, a se espatifar contra uma torre do World Trade Center. Desabamento. Reação imediata: pânico. O que acontecera era tão inconcebível que dava vontade de procurar o Godzilla se escondendo atrás de algum prédio, pelas câmeras da CNN. As primeiras demonstrações das autoridades internacionais eram de choque. O lábio inferior de Arafat tremia de medo. Claro, ninguém assumia a responsabilidade - numa hora daquelas significaria declaração de guerra. Até o Fidel espertamente demonstrou sua reprovação. Depoimentos chocantes tomavam conta de várias páginas na internet, narrados em tempo real. Na verdade, a guerra já tinha sido declarada declarada; só faltava identificar o inimigo. O presidente Bush, enquanto isso, encontrava-se em algum lugar da Flórida.
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O enorme número de ironias envolvendo o incidente me espantou desde o início. Por exemplo, os engenheiros com quem trabalho imediatamente ressaltaram a eficiência com que o sequestro foi conduzido. Deformação profissional, claro, de gente acostumada a buscar sempre a melhor solução, mas a eficiência sempre foi um dos abre-alas fundamentais dos Estados Unidos. Depois do ataque ao prédio 1 do WTC, funcionários do prédio 2 correram para o saguão do 76º. andar, onde a segurança avisou que todos deveriam voltar ao trabalho por se tratar de um problema no outro prédio, como contou o Cris, acabando por expôr os trabalhadores por conta de um desses procedimentos de segurança... A dificuldade dos EUA em identificar o provável autor do atentado, não por ser difícil imaginar um provável suspeito, mas porque a lista podia ser grande demais e e o que é pior, talvez a imensa logística necessária apontasse para a prata da casa: a turma do Tim McVeitch, um Unabomber desses, e por aí vai. Em seu discurso da noite, Bush falou em "our great nation", falou que "derrubaram a fundação de um prédio, mas não abalaram as fundações deste país", falou em "caçar e punir os culpados", enfim a eterna retórica de arrogante xerife e auto-proclamado dono do mundo, o mesmo comportamento ao qual é lugar comum se atribuir o ódio e o rancor dos menos favorecidos, dos excluídos, dos losers. Falou grosso, mas na hora do bombardeio estava escondido em alguma base militar de Nebraska. Em cada encadeamento de idéias a estreita relação de causa e efeito parecia querer gritar seu nome, para explicar porque aquilo tudo ocorrera.
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Não consigo deixar de imaginar o ocorrido em 11 de setembro sem deixar de pensar num assalto de sinal em que o pivete acaba matando o dono do carro importado, com proporções mundiais. Claro que a comparação não é muito boa, porque raramente o pivete está movido por ideologia ou religião, e é preciso bem mais do que desespero para tomar um Boeing inteiro — um não, quatro - de refém. O atentado foi o sinal dos tempos, foi a primeira invasão de Roma pelos bárbaros, a primeira estátua quebrada. O início da queda do império... americano. E aqui abro espaço para uma rápida digressão acerca da natureza dos impérios.
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Nos últimos 500 anos — e essa estimativa é muito modesta — todos os grandes impérios que se ergueram o fizeram calcados no poderio militar. Nesse período, e em provavelmente qualquer um anterior a ele, todas as civilizações que apareceram sem força ou conquistas militares, em determinado momento a meio caminho de sua história foi subjulgada, talvez por uma civilização não mais organizada ou desenvolvida cientificamente, porém, certamente, com maior poderio militar. Com muito esforço dá para encontrar talvez na Índia, talvez alguma civilização pré-colombiana que tenham aflorado sem o objetivo primeiro da conquista do território estrangeiro, mas nenhuma dessas progride o suficiente para que chegue a entrar na História. O que acontece é que ela ou é destruída ou incorporada por um conquistador, perdendo, neste processo, as suas características próprias. E aqui se encerra essa digressão.
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Com o império norte-americano não foi diferente. Porque se o american way of life foi a maior invenção do século XX, se o cinema foi a maior indústria de exportação do planeta, se seus bens de consumo se tornaram padrão de qualidade em todo o mundo, resta lembrar que com uma bomba atômica debaixo do braço e um pelotão de fuzileiros navais na mão é mais fácil vender essas coisas. Atribuir apenas à excelência econômica a influência norte-americana no mundo é esquecer a miríade de ditadores que ajudaram a espalhar ao redor do mundo, do sudeste asiático à África e América Latina, à base de força militar e apoio econômico, durante o período da Guerra Fria e antes, a fim de garantir mercados potenciais que poderiam ser perdidos para o bloco socialista da União Soviética. Antes que venham a me interpretar errado, aviso que listar as atitudes norte-americanas reprováveis não é de maneira alguma justificativa o ato terrorista que se cometeu contra a maior cidade do mundo; o objetivo aqui é mostrar como o comportamento de um império que sempre caracterizou os USA. Além do que, terrorismo não tem justificativa. Justificativa é o nome que se dá quando se diz que jogar duas bombas atômicas em alvos civis no Japão era explicável para evitar a morte de mais soldados - e depois se vence a guerra.
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Mas essa guerra, não a grande guerra dos cachorros grandes, donos de arsenal atômico, mas a pequena guerra, da convivência entre opostos, a travada dia a dia no cotidiano civilizado, essa parece cada vez mais perdida. Não que estivesse perto de ser ganha, embora o estado de Paz armada da Guerra Fria, ou de Pax Americana, depois que o muro de Berlim ruiu, nos enganasse satisfatoriamente com sua impressão de segurança, pelo respeito a certos limites. Mas os assaltantes estão nos sinais de trânsito, os canibais estão na sala de jantar, e os terroristas derrubam os maiores prédios do mundo. É um daqueles pontos de inflexão, um daqueles momentos singulares em que a História se olha no espelho e se pergunta a que ponto sua coerência a levou, afinal, os vencedores continuarão tendo o direito de escrevê-la e os cidadãos comuns continuarão achando que essa é a única e intransponível verdade. É num momento desses que Mister Kurtz questiona a moralidade de seus atos no meio da selva. É quando se olha para o abismo, e o abismo olha de volta. É quando alguém grita que o rei está nu.
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Mas Bush já convocou a cavalaria enquanto gira os Colts 45, carregados de balas atômicas nos dedos. Pela internet os apelos populares se mutliplicam pedindo vingança, retaliação, destruição, até extermínio do inimigo. O mundo, assustado pela falta de segurança que o terrorismo cria, parece ratificar as ações mais radicais norte-americanas. Não é muito difícil imaginar qual caminho será o escolhido. De novo.
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Viagra
Entreouvido de um dos populares, em frente a uma dessas lojas de eletrodomésticos que deixam as televisões ligadas para atrair o público, durante as cenas de destruição:
- Eu bem que vinha dizendo que os Esatdos Unidos estavam se tornando em uma potência fraca...
Botinadas
Nem todo mundo percebeu que entre os palestinos que apareceram comemorando o atentando, havia um garoto com a camisa da seleção brasileira, número 9. Já andam dizendo por aí que, dado o nível de violência do esquema tático, Felipão anda pensando em convocá-lo ("Vai lá, agarra o Zidane e depois puxa o pino da granada!")
Rafael Lima
Rio de Janeiro,
18/9/2001
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