É duro para os pais pensarem isso, mas os pequenos rebentos cedo ou tarde atravessarão a aridez da rejeição. O desamor faz parte da vida e é mais constante talvez do que o amor no mundo individualista em que vivemos. Habituar-se com ele é estar apto para uma sobrevivência mais indolor. Esse panorama sombrio é o cenário psicológico do livro infantil de Tim Burton, O triste fim do pequeno menino ostra e outras histórias (Girafinha, 2007, 124 págs.), que a editora Girafinha acaba de lançar, com competente tradução de Márcio Suzuki.
O cineasta Tim Burton é adorado e odiado pelos mesmos motivos. Seu mundo de fantasia seduz e causa repulsa ou tédio - mas dificilmente deixa indiferente. O protagonista de Edward, mãos de tesoura traz uma característica em comum com todos os personagens de O triste fim...: são inadequados por sua natureza, e portanto não há redenção possível para eles. A inadequação em nada representa falha de caráter, e se prejudica os outros é por fatalidade. Quem não se lembra da cena em que Edward tenta tocar o rosto da menina, filha da família que o acolheu, e as lâminas que tem no lugar dos dedos cortam a pele da face? O gesto de ternura ressalta a aberração, e com a turba que o rejeita e se enfurece, Edward se torna subitamente de ameaça a ameaçado. A temática desse exílio vai passar pelos poemas e aqui e ali, o leitor fã vai ver ecos do cineasta no poeta-ilustrador.
Animador extremamente competente (começou a carreira nos estúdios Disney), Burton empresta a assinatura do traço de A noiva cadáver para os pequenos seres infelizes que habitam seu mundo poético. Muitas vezes, o abandono vem pelos próprios pais, tão entretidos consigo próprios ou com a vida de casal, que tratam o filho como estorvo, em um tom triste mas delicado. O amor é amargo mas possível, como no poema "Garota Vodu", sobre uma menina de pano, cheia de alfinetes, que tem "Olhos que giram como discos/ Ela possui dos belos pares/ Olhos de poderes hipnóticos:/ Olhos de apaixonar os rapazes.". Esse mesmo poder de fascínio vem com uma maldição: "Mas ela também tem uma sina/ Que jamais pode ser quebrada:/ Se alguém dela se aproxima/ Seu coração sente as espetadas."
A sinceridade em que a visão de mundo do autor se revela é chocante, destacada pelo meio em que surge, o livro infantil. O tema de como tratar o diferente tem uma abordagem livre e artística, politicamente incorretíssima, mas muito rica e imaginativa. Burton já afirmou que sua infância foi peculiar e solitária; se seus personagens refletirem esse dado biográfico está explicado porquê parecem tão humanos e espontâneos. O dom de sensibilizar a quem não faz parte de um status quo é a grande virtude dos poemas, embora não seja uma leitura leve, ou para qualquer tipo de pai.
A nova cria de Índigo A maldição da moleira é o novo livro de Índigo, blogueira que também publica em papel. Apesar do título tétrico, a história é sobre os primeiros meses da vida de Heitor. O bebê tem uma particularidade: a avó lhe fecha a moleira antes do tempo normal. Bebês começariam a ficar mais espertinhos quando a moleira (parte superior do crânio que é mole no nascimento) começa a fechar. E Heitor, em vez de ser um bebê comum, passa a ter um discernimento natural a uma criança mais velha ou um pré-adolescente. Mas a graça do livro são mesmo as piadas para os pais, excelentes. Sim, porque o livro tem todo o jeito de feito para ser lido pelos pais para os rebentos. Teletubbies e outros programas de tevê estão lá, indefectíveis. E pais que precisam eventualmente apelar à telinha para acalmar os filhotes vão dar boas risadas, lendo com as crianças (e achando um bom pretexto para fugir da programação televisiva).
Na Internet, Índigo tem um senso de humor afiado, ácido. Por ser um livro infantil, está mais contido (apesar de, no fundo, ela não estar muito ligando o tal do politicamente correto, a julgar pela expressão "cagar" que aparece no meio do livro). O livro cumpre com a função de entreter e divertir, mas a aposta nas piadinhas para os pais funcionou tão bem que haveria espaço para mais, uma vez que a narrativa segura as crianças por si só. Índigo já publicou os infantis Como casar com André Martins, Caixinha de madeira, com a correspondência secreta entre as heroínas Branca de Neve, Cinderela e Bela Adormecida, Saga animal: muita batalha por um bicho de estimação!, entre outros. Literatura para gente pequena é coisa séria, e a Índigo sabe disso.
Versinhos caprichados
"Felicidade é improviso". Esse é só um dos achados de Os bichos e seus caprichos, livro de poesia escrito por Fabiano Onça ("Quando era criança e estava sozinho,/ Brincava de rima, fazia versinho. Brincar terminou virando livrinho.") e ilustrado por Tatiana Paiva ("Ela sempre brincou com cor./ Hoje ainda desenha e cola,/ No papel e no computador.").
O tema é o mesmo de Tim Burton, a alteridade. Mas a visão de mundo é totalmente diferente, terna e bem-aventurada, sem precisar de conflitos para mover os personagens. Os bichos, cada um com seu talento, com seu jeito e seus desejos, encontram seu cantinho no mundo e se realizam cumprindo sua vocação. O texto não subestima a inteligência dos pequenos leitores com lições edificantes e chatas, contadas de força maçante; livros moralistas geram imbecis fascistóides... O design de Tatiana torna o livro delicioso de folhear e viajar na poesia visual que completa a das palavras, trabalhadas com cuidado e cheias de interessantes jogos poéticos.
Os adultos costumam subestimar as crianças e sua capacidade de compreensão e interpretação. Os adultos apenas esqueceram que no mundo da fantasia vale tudo, não só coisas boas e cor-de-rosas.
É bom ver um livro de Tim Burton sendo lançado no país, ainda mais sendo um livro de poesias. Se despertar o gosto dos pequenos pela leitura já é um desafio, este o é ainda mais no campo da poesia. A Índigo é mesmo um frescor na literatura infantil, sinto nela a mesma falta de medo que há em Lygia Bojunga. Escrevem para crianças sem pensá-las exclusivamente como crianças, mas sim como leitores, que merecem boas tramas e histórias sem fingimentos.