COLUNAS
Quinta-feira,
26/7/2007
O criado e o mordomo: homens do patrão
Marcelo Miranda
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A relação entre patrões e empregados é tema constante no cinema desde sua criação. Jean Renoir, nos anos 30, já a retratava em A regra do jogo - no que seria referenciado por dezenas de outros cineastas ao longo das décadas, entre eles o Robert Altman de Assassinato em Gosford Park (2001). Aqui neste espaço pretendo colocar em perspectiva dois títulos dessa linha, menos para esgotar o assunto e mais para relembrar uma obra-prima do passado e falar de outra do presente. Em ambas, o choque patrão versus empregado é o que move as narrativas, e cada um trata disso de uma forma oposta, porém complementar, e por vezes semelhante.
De um lado, O Criado, ficção do norte-americano Joseph Losey que perturbou público e crítica desde quando lançado em 1963. Dentro do cinema da época, parecia um corpo estranho: narrativa voltada ao inconsciente dos personagens, atmosfera onírica, sentimentos ambíguos, insinuações de incesto, homossexualidade e perversão. Isso num drama aparentemente simples de um novo rico que contrata um empregado para cuidar de sua mansão. Do outro lado, há Santiago, documentário do brasileiro João Moreira Salles inicialmente moldado para falar do mordomo do diretor, mas que acabou se tornando um filme sobre o próprio diretor - ou, mais que isso: um filme sobre sua relação com o mordomo. Uma trama ficcional, outra real. Mecanismos distintos para tentar transmitir a idéia de que existe um abismo que separa a serventia do patronato.
No filme de Losey, o mordomo (Dirk Bogarde) já chega nas primeiras cenas discretamente impondo seus conceitos e idéias à morada do patrão (James Fox). Se a relação dos dois desde então parece ser distanciada, não vai demorar para ela se tornar muito próxima, devido não só às maquinações manipuladoras do empregado, mas também à fragilidade e passividade do patrão. Losey passa metade de O Criado criando a ambientações, mostrando ao espectador o desenrolar da relação dos protagonistas. Quando entra em cena um terceiro elemento (a suposta irmã do criado), o clima pesa, e já torna-se perceptível que os rumos a serem tomados não serão tão simples quanto a introdução fazia antever. Losey é da geração de grandes diretores adorados pelos franceses da Cahiers du Cinema, e não por pouco. Seu cinema transpira personalidade e vigor, muito disso saído de uma forte presença da câmera nos momentos mais tremulantes de seus personagens.
O Criado, de Joseph Losey
Isso fica patente na segunda metade de O Criado, quando a verdade sobre o mordomo é revelada a um impassível patrão ao lado de sua noiva. É interessante que este momento, dentro do filme, seja resolvido pelas duas molas-mestres do cinema: o som (risos e palavras de teor sexual) e o movimento (a sombra do criado no alto da escada, primeiro ausente, depois surgindo de dentro do quatro, para em seguida voltar ao aposento). É dessa fissão puramente cinematográfica e de contornos expressionistas que Losey vai inverter as posições. O empregado passa a comandar, e o patrão obedece. Existe aqui um certo teor político, em especial na questão das relações de poder mas tudo se fixa mais na seara do delírio. Uma festa será convocada, e nela se perceberá as nuances de uma relação doentia entre os dois homens. Bogarde não mais deve obediência ao chefe. Ele quer mandar, e isso não era escondido em momento algum - não é por outro motivo que ele se esbaldava com a "irmã" no quarto do patrão.
Joseph Losey jamais transforma O Criado num comentário puramente social ou denuncista. O filme nunca se propõe a ser qualquer tipo de retrato autêntico ou mesmo imaginativo sobre a exploração do assalariado. A produção está mais próxima da materialização de um pesadelo. Pesadelo de dor e sofrimento a partir de jogos de dominação e desrespeito. Quando os papéis se invertem, Bogarde não se transforma simplesmente em patrão, e Fox, em empregado. O primeiro começa a agir como patrão, e o segundo, como empregado. A ação, neste caso, pode ser muito mais sedutora para um e destruidora para outro do que a ascensão ou queda de um status.
Por sua vez, Santiago joga em outra corrente, porém dentro do mesmo universo de Losey. O patrão é João Moreira Salles; o mordomo é Santiago. Os dois têm a conexão de terem vivido juntos por anos na mansão dos Salles, no Rio de Janeiro. O documentarista viu em sem empregado uma personalidade fascinante a ser retratada em filme. Procurou-o em 1992 e iniciou um trabalho audiovisual sobre suas particularidades - como escrever milhares de páginas sobre todas as dinastias do mundo. Porém, a produção não andou. Salles não terminou o projeto, e também nunca entendeu por qual motivo. Foi para responder à questão que ele retornou às imagens, em 2006, mais de dez anos depois da morte do mordomo.
Santiago, de João Moreira Salles
Santiago, assim, se articula num discurso de João Moreira sobre suas dificuldades em atingir a essência do seu retratado. Muito disso se deveu, como ele mesmo percebe, à relação sempre existente entre patrão (João) e empregado (Santiago). Mesmo quando ligava a câmera, nunca esses degraus eram diminuídos. Se o mordomo falava, era com "Joãozinho", nunca com o diretor do filme. Se Salles fazia algum pedido, nunca era com o personagem, e sim com o agregado. Basta pensar no tom ou nas ordens mostradas ao longo do filme e imaginar Salles dizendo as mesmas palavras ao presidente Lula (retratado por ele em "Entreatos") ou ao pianista Nelson Freire (em filme homônimo). Jamais aconteceria. Mas com Santiago pode. Porque Santiago é só o mordomo.
Caso complexo avaliar Santiago. Porque ao mesmo tempo em que o filme expõe uma chaga do passado, essa exposição é feita pelo próprio realizador do filme. João Moreira Salles não poupa o espectador de tomar contato com instantes constrangedores a ele e ao seu personagem, instantes que, de alguma forma, beiram um certo sadismo e, claro, o abuso de poder - do cineasta e do patrão. Salles coloca em xeque o seu método de documentarista na época e, junto, a noção de cinema-verdade baseado em entrevistas pessoais. Mas ao mesmo tempo, nunca deixa de lado que o caso Santigo se refere única e exclusivamente aos seus anseios de se lembrar da família e da infância. O mordomo teria funcionado como catalisador de memórias, e justamente por isso o filme original de 1992 nunca deu certo: porque Santiago era uma figura secundária.
E é onde se chega ao maior dos nós deste documentário. Enquanto há 15 anos o mordomo era apenas a escada para João Salles relembrar sua boa época de criança, agora, na remontagem do filme, novamente o ex-empregado está em segundo escalão. Porque, afinal, Santiago tornou-se um tipo de expiação para Salles. É através do filme que ele tenta eliminar uma angústia. Para tanto, retorna a imagens e situações as quais ele agora critica - mas as está utilizando justamente para estes fins. É a tal relação de poderes: mesmo mumificado apenas em imagens, anos depois de morto, o mordomo Santiago serve aos anseios do patrão Joãozinho. É nessa rica complexidade e em seus caminhos tortuosos e escolhas ambíguas que reside o fascínio do filme.
Marcelo Miranda
Belo Horizonte,
26/7/2007
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