A decisão de escrever uma resenha sobre O óbvio ululante (Agir, 2007, 448 págs.), de Nelson Rodrigues, foi tomada assim que iniciei a leitura do livro. Os textos que o compõem, uma seleção da coluna "Confissões", publicados no jornal O Globo entre 1967 e 1968 (mais duas crônicas publicadas na coluna "Memórias", no Correio da Manhã, em 1967), são exemplos de que um escritor pode, sim, ser engraçado, melancólico, irônico e crítico ao mesmo tempo, em seus textos. A impressão que se tem, ao ler as crônicas de O óbvio ululante, é a de que no mesmo momento em que há esperança, não há por quê lutar. É como se um boxeador pedisse para seu treinador jogar a toalha, mas não a deixasse tocar o chão e voltasse à luta logo em seguida. Simplesmente incrível e inacreditável. Para tanto, é necessário ser gênio. E poucos podem ser considerados gênio. Nelson Rodrigues pode.
Ao avançar a leitura, um problema começou a se desenvolver. Como resenhar um livro que tem parágrafos e mais parágrafos merecedores de citação sem ficar angustiado por não poder citá-los todos? Afinal, é uma resenha, não uma reprodução do livro.
Difícil. Ainda mais quando lemos algo assim:
"O trágico da nossa época ou, melhor dizendo, do Brasil atual, é que o idiota mudou até fisicamente. Não faz apenas o curso primário, como no passado. Estuda, forma-se, lê, sabe. Põe os melhores ternos, as melhores gravatas, os sapatos mais impecáveis. Nas recepções do Itamaraty, as casacas vestem os idiotas. E mais: - eles têm as melhores mulheres e usam mais condecorações do que um arquiduque austríaco."
Isso foi escrito há 39 anos, minhas senhoras e meus senhores. 39 anos! E, nesse caso, Nelson fala do idiota que, segundo o Houaiss: "diz-se de ou pessoa pretensiosa, vaidosa, tola". Ele tinha razão quando escreveu a crônica e continua tendo hoje.
As crônicas reunidas no livro não se limitam à crítica social. Nelson Rodrigues faz comentários sobre amigos (Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, Vinicius de Moraes, entre outros), literatura, política, futebol e, é claro, sobre si mesmo. Aliás, dizer que Nelson escrevia "sobre si mesmo" é uma redundância, pois ele consegue, como ninguém, colocar-se inteiro em tudo que escreve, mesmo que aparentemente não esteja lá, no texto. Nelson Rodrigues não escrevia por escrever, ou para ganhar dinheiro (ele ganhava dinheiro com o que escrevia, o que é totalmente difentente de escrever para ganhar dinheiro). Nelson Rodrigues escrevia porque tinha de escrever. Porque precisava disso para manter-se vivo.
É mesmo impressionante como ele conseguia, em uma única crônica, falar sobre tantos assuntos. Em "Na escola pública, minha merenda foi uma só, imutável: - banana", Nelson começa falando sobre um amigo erudito: "E eu fico a resmungar, na irritação da minha impotência: 'Como sabe, como lê, como cita!'" Em seguida, faz uma crítica a essa obsessão do amigo pelo conhecimento ou pela quantidade de saberes: "Por tudo que sei da vida, dos homens, deve-se ler pouco e reler muito. A arte da leitura é a releitura." Depois, faz piada: "Certa vez, um erudito resolveu fazer ironia comigo: perguntou-me: 'O que é que você leu?' Respondi: 'Dostoievski.' Ele queria me atirar na cara os seus quarenta mil volumes. Insistiu: 'Que mais?' E eu: 'Dostoievski.' Teimou: 'Só?' Repeti: 'Dostoievski.' O sujeito, aturdido pelos seus quarenta mil volumes, não entendeu nada." E ensina: "Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoievski".
Linhas depois, Nelson lembra da infância, tema recorrente em suas "Confissões". É quando ele fala da banana que levava todos os dias para a escola, como merenda. E de quando ele teve vergonha da merenda. "No terceiro dia [de aula], comecei a ter vergonha da banana. (...) Ao mesmo tempo que me envergonhava da banana, tinha-lhe pena. Pena da banana. De vez em quando, faltava dinheiro em casa. Banana custava um vintém. E eu ia para a escola sem merenda. Na hora do recreio, rodava pelo pátio, errante e perdido de fome."
O tempo de escola não traz muitas boas lembranças a Nelson Rodrigues. E, arrisco dizer, talvez venha daí, desse tempo, a crueldade de boa parte de suas narrativas. Sua professora era terrível, uma megera que o fazia passar as mais variadas humilhações na frente de todos os colegas. Como no dia em que grita, diante de toda a classe: "Eu sabia! Eu sabia! Tem piolhos, lêndeas!"
Mais conhecido pelas peças e contos polêmicos (alguns ainda chamam seus textos de "amorais"), Nelson Rodrigues era, no fundo, um romântico: "Tudo é falta de amor. O câncer no seio ou qualquer outra forma de câncer. É falta de amor. As lesões do sentimento. A crueldade. Tudo, tudo falta de amor." Um homem que não tinha vergonha de sua sinceridade nem de sua própria história. Nelson não deixava de falar o que quer que fosse, de quem quer que fosse. Criticava e elogiava, sem demagogia, sem troca de favores.
Considerado por muitos como o maior dramaturgo da história do teatro brasileiro, Nelson Rodrigues é exímio prosador. Suas memórias em forma de crônicas em O óbvio ululante são prova cabal disso. Suas peças têm maior destaque por serem, até hoje, alvo de polêmicas. Mas sua prosa (mais especificamente suas crônicas e romances, já que os contos são bastante populares, justamente por também serem polêmicos) certamente terá o destaque merecido, cedo ou tarde. Nelson Rodrigues é um escritor completo, poderíamos dizer. Afinal, foi crítico, dramaturgo, cronista (social e esportivo), contista e romancista. E foi, no mínimo, bom em todas as vertentes. Não são muitos os escritores que podem se vangloriar de tal pluraridade.
Também adoro esse livro, de um jeito esquisito, que não sei definir. Nelson é um "pulha" na maior parte das crônicas, pra usar uma expressão dele, mas é um amor, desperta encanto apesar de tudo de ruim que destila. Só mesmo ele pra ter coragem de escrever, numa das histórias que você cita, que sentia inveja do pão com ovo que escorria gema pela boca do colega. Um idiota jamais diria isso. Nelson é principalmente inteligente em seu "óbvio ululante" e a inteligência fascina. Apaixonante! Mas paixão não é muito racional, talvez por isso seja difícil falar sobre o livro, que expõe as confissões e invenções bastante humanas desse grande, corajoso escritor, retratista da vida como ela é...
Oi Rafa, compartilho com você a experiência de ter lido esta nova edição do livro, que, arrisco dizer, é uma das melhores coisas que já li. Sempre admirei Nelson Rodrigues, não apenas como dramaturgo, mas principalmente como cronista. E no universo das cronicas, O Obvio Ululante é uma obra singular.