COLUNAS
Quarta-feira,
10/10/2007
O brilho da falsidade
Tais Laporta
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"Que formosa aparência tem a falsidade". A frase é de Shakespeare, mas bem que poderia sintetizar o livro de ficção Jóias de Família (Companhia das Letras, 2007, 88 págs.), de Zulmira Ribeiro Tavares. Sem emitir juízos, o romance ironiza os falsos valores da alta sociedade, encobertos por brilhos, rituais e extravagâncias. Com a sutil comparação entre as jóias e os seres humanos - um anel de rubi, cujo interior é podre - a escritora venceu um Jabuti de melhor romance e autor em 1991, e agora recebe um relançamento pela Companhia das Letras.
Todo o romance se passa em um único dia, no apartamento de uma rica viúva. A narrativa é um grande devaneio contornado pela frieza e economia da terceira pessoa: "Maria Bráulia Munhoz, no nono andar de seu apartamento no Itaim Bibi, prepara-se para o almoço. A mesa está posta para duas pessoas: ela e o sobrinho. A toalha sobre a mesa redonda, pequena, é de linho branco adamascado e no centro há um lago também redondo e pequeno, de espelho. Sobre a superfície de espelho pousa um cisne de Murano". Nas primeiras linhas do livro, a suposta imparcialidade da autora já se desfaz ao descrever um mundo frágil, que se auto-denuncia.
Em um ensaio interessante, a professora de Literatura Comparada da USP, Ana Paula Pacheco, observa que o cisne sobre a mesa da personagem é, na verdade, uma metáfora. "O lago tem a profundidade enganosa do espelho e, nele, Narciso não se afoga". O pivô deste jogo é Maria Bráulia. Presa às ruínas de seu patrimônio, ela não abandona os formalismos da época de casada. O anel de rubi, presente do falecido marido, o juiz Munhoz, é falso, embora aparente ser tão valioso quanto uma pedra original. É com a imitação barata que Maria Bráulia ostenta, perante a sociedade, uma vida reluzente e feliz. A ilusão do valor atrai olhares cobiçosos, e não deixa transparecer um matrimônio sustentado pelas aparências.
Caem as máscaras. Ninguém poderia suspeitar que o marido de Maria Bráulia, um juiz respeitado, entre quatro paredes, recebesse favores especiais de seu secretário-assistente. A homossexualidade enrustida - bijuteria barata que o juiz precisa esconder - foi falsamente esculpida no formato de uma jóia preciosa: a magistratura. Munhoz é o próprio rubi falsificado. De origem baixa, impressiona a família da esposa com um presente de valor ilusório, e quando se vê livre do julgamento externo, lambuza-se da imoralidade que condena em público. A vida sob rótulos, como brinca o espirituoso Millôr Fernandes, está escondida nas melhores aparências. "Nada é mais falso do que uma verdade estabelecida."
Com a morte do juiz Munhoz, Maria Bráulia preserva o respeito e a submissão do passado, o mesmo de quando já desconfiava da homossexualidade do marido. "A essa altura de sua crescente intimidade com A VIDA, Maria Bráulia Munhoz naturalmente já não era mais a bobinha dos seus tempos de recém-casada. Assim, quando o Munhoz lhe dizia (cada vez mais a propósito de tudo e de nada) que um juiz julga secundum aequitatem, segundo o sentimento que tem do que é direito, ela baixava modestamente a cabeça como sempre, mas não em sinal de respeito como supunha o marido, e sim de dissimulação, pois o latim lhe soava (apesar do cuidado que o juiz tinha, cada vez, de traduzi-lo imediatamente em seguida para ilustração da mulher) com um timbre esquisitamente lascivo".
A personagem só descobre o valor intangível da VIDA (em caixa alta, como Zulmira faz questão de colocar) na companhia do joalheiro Marcel de Souza Armand, amigo do juiz e mentor de jóias da família. É ele quem revela a falsidade do "anel de rubi" (um casamento de mentiras) e ensina à personagem, com didatismo, o verdadeiro conteúdo de uma pedra preciosa. Recheada de metáforas, a narrativa de Zulmira leva o leitor a encontrar, junto de Maria Bráulia, o rubi original, sob o qual existe o verdadeiro amor.
Com Jóias de Família, a autora visita uma camada pouco explorada pela literatura brasileira. A elite, quase intocável, raramente recebe agulhadas senão diante do contraste com a pobreza. Claro que o choque social também é latente no romance. A relação da viúva dondoca com a doméstica, Maria Preta, lembra algo de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freire, como se houvesse uma adaptação para a alta sociedade dos anos 90. Culturas distantes demais e papéis muito bem delineados. Pouco muda nas diferenças - que gritam - entre o senhorio e a criadagem.
Outra provocação do livro é a maquiagem de Maria Bráulia, quase uma máscara que molda expressões artificiais. Por trás do rosto colorido, a personagem esconde uma feição apagada, murcha como uma uva-passa. Maquiar-se é quase um ritual sacrossanto no jogo de aparências. É o rubi fosco que jamais pode transparecer. Importante dizer que Jóias de Família deve ser lido como se degusta um bom vinho. Não aos goles apressados, mas num saborear vagaroso, porque tudo é figurativo. Importam menos os fatos do que a ironia jornalística com que Zulmira descreve a cintilante vida de Maria Bráulia. Aí está a beleza do romance.
Para ir além
Tais Laporta
São Paulo,
10/10/2007
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