COLUNAS
Terça-feira,
26/2/2008
Contramão, de Henrique Schneider
Luis Eduardo Matta
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Fiquei muitíssimo bem impressionado com a recém-concluída leitura de Contramão (Bertrand Brasil, 2007, 176 págs.), do escritor Henrique Schneider, um dos bons livros que me fizeram companhia neste verão. O romance, consistente e muito bem escrito, de narrativa ágil e um encaminhamento surpreendente, revela as angústias e desatinos de um homem comum, assaltado pela imprevisibilidade da vida, por meio de uma interessantíssima road story em verde-amarelo com sotaque gaúcho.
Contramão, embora não seja declaradamente um thriller, acaba funcionando como tal, já que, uma vez deflagrada a questão dramática logo nas primeiras páginas, o ritmo tenso e inquietante com o qual o narrador conduz a trama, captura de imediato a atenção do leitor que, a partir de então, torna-se refém dos destinos de Otávio Augusto Ribeiro de Souza, o protagonista. Otávio é um vaidoso e ambicioso executivo de 25 anos, que dirige a metalúrgica do tio e mantém uma relação estável, porém morna, com uma moça, Claudia, com quem pretende se casar em breve ― como, aliás, manda o código social do executivo bem posicionado. Tudo na sua vida parece encaminhado e nos seus devidos lugares, quando, numa manhã como outra qualquer, ao sair de carro do prédio onde mora, em Porto Alegre, em direção ao trabalho, Otávio, inadvertidamente, atropela duas crianças que atravessavam uma avenida. Ele apavora-se ao contemplar os dois corpos estendidos no asfalto e, antes que alguém venha acusá-lo de assassinato, resolve, impulsivamente, fugir.
É essa fuga, desesperada e beirando a paranóia, que permeia toda a história. Otávio está certo de que a polícia se encontra no seu encalço ― ainda que não possua nenhum indicativo concreto disso ― e, para escapar dela, embrenha-se pelas estradas do Rio Grande do Sul em direção à fronteira com o Uruguai, onde, acredita, estará a salvo. Neste percurso muitas coisas acontecem. Sempre procurando se antecipar aos seus supostos perseguidores e cada vez mais ciente de que é um foragido procurado por todo o estado, Otávio se transfigura totalmente, e transforma-se em alguém totalmente despido de moral e limites, capaz de qualquer ato em nome da liberdade; alguém, por sinal, muito diferente do executivo esquemático do começo do livro, cujo futuro dourado parecia garantido. A trama avança à medida que Otávio se aproxima do Uruguai e, em meio a lances audaciosos e até perversos, é possível refletir sobre os limites da moral humana. Até que ponto o indivíduo é capaz de conservar sua integridade e decência em situações extremas? Até que ponto conseguimos manter o equilíbrio emocional e não imergir em teorias conspiratórias que, muitas vezes, estão presentes unicamente na nossa imaginação? Mesmo o homem mais civilizado está imune a se deixar dominar pela própria barbárie?
O certo é que, a despeito da dramática mudança operada em Otávio, de suas atitudes abjetas e repulsivas e da loucura que o domina enquanto luta para chegar à fronteira, torcemos por ele o tempo todo, como se o nosso lado obscuro também emergisse no decorrer da leitura. Como se nós, leitores, estivéssemos, igualmente, fugindo de alguma coisa e nos debatendo de forma febril a fim de preservar a nossa liberdade.
Este não é o primeiro trabalho de Henrique Schneider, nascido em Novo Hamburgo, em 1963. Ele tem outras obras publicadas, como Pedro Bruxo, A segunda pessoa e o premiado O grito dos mudos, lançado originalmente em 1989, e reeditado em 2006. Após a boa experiência com Contramão, já adicionei O grito dos mudos à relação das minhas próximas leituras. Pelo que li na sinopse, o livro ― que narra o desespero de um homem de 47 anos ante a repentina perspectiva de ficar desempregado ― parece abordar uma questão similar à de Contramão: a de como a sensação de estabilidade pode ser ilusória diante dos imprevistos surgidos ao longo da nossa existência. Trata-se de um tema incômodo, pertinente e sempre atual, caro a todos nós, e nada melhor do que uma ficção inteligente para nos levar a pensar a respeito e a fazer, se possível, uma analogia com as nossas próprias vidas.
Leitura no interior do país
Na minha recente temporada anual de verão na chácara de Maricá, uma percepção que se insinuava havia tempos, não me saiu da cabeça e materializou-se de vez: a de como a expansão do mercado livreiro brasileiro poderia se dar pelas cidades menores, pelo vasto interior do país.
Explico: uma das alegações recorrentes que as pessoas fazem para justificar o fato de lerem pouco é a falta de tempo, em meio à correria do dia-a-dia. O trânsito, o ritmo acelerado da cidade grande que se incumbe de seqüestrar as horas livres, as demandas da vida moderna mais fortemente presentes nos grandes centros etc, tudo contribui para afastá-las dos livros. Ora, já que é assim, por que as editoras, então, não voltam suas atenções para o interior, onde a vida é mais lenta, as coisas não acontecem na mesma velocidade furiosa e as pessoas contam com mais tempo disponível em contraste com opções de lazer e cultura em número menor do que em metrópoles como, por exemplo, o Rio de Janeiro ou São Paulo?
Falando dessa forma, parece uma tarefa simples, mas não é. A começar pela dimensão territorial do Brasil, que torna qualquer iniciativa dessa natureza quase uma missão intergaláctica, sem contar os razoáveis investimentos que precisariam ser feitos, inclusive porque a população da maioria dos municípios brasileiros tem escassa ou nenhuma tradição em leitura. Ainda assim, talvez fosse o caso de alguns editores mais audaciosos considerarem a idéia e a levarem a cabo. Quem sabe, espalhando, a título de experiência, pequenos quiosques de livros em pontos tradicionais de algumas cidades pequenas e médias, tais como mercados, farmácias, terminais rodoviários e até botequins, numa espécie de projeto piloto, em vez de ficar cobrando a abertura de livrarias em todas elas para, somente então, ver o que acontece. O fato é que há leitores, sim, no interior e Maricá é um exemplo. Até poucos anos atrás, o município que conta, hoje, com cerca de cem mil habitantes (há vinte anos a população, se bem me recordo, não chegava sequer à metade disso), não possuía nenhuma livraria e hoje já conta com algumas. Não sei o número exato, mas visitei, neste verão, duas delas ― ambas com um acervo considerável, diversificado e atualizado. Seja como for, se queremos de fato difundir a leitura entre a população brasileira, uma hora ou outra o interior do país terá de ser descoberto. Este Brasil dito mais "profundo" que forneceu tanta inspiração para boa parte da melhor literatura nacional, pode ser, também, um campo fértil para o florescimento da leitura.
Para ir além
Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro,
26/2/2008
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