Imagine, você, aquele almoço de domingo em que absolutamente toda a família está reunida. Pais cachaceiros, mães tiranas, filhos pentelhos, primos folgados, tios tarados, tias palpiteiras, cunhados cafajestes, sogras megeras, noras invejosas, avós ranzinzas... Tem lugar até para o cachorro mijão e o papagaio boca-suja. Misturando tudo isso no mesmo liqüidificador, óbvio que ninguém sairá ileso. E os sintomas dessa epopéia serão os mais diversos.
De um lado as crianças correm, gritam, quebram, choram, brigam, fazem guerra de almofada e quase sempre acabam se machucando com as "brincadeiras de mão". Do outro lado, lá onde só fica "gente grande", os adultos se exaltam em verborragias idílicas, empanzinados em seus próprios vícios e embebidos em barris de cachaça. Após a comilança desenfreada, os bacuris seguem em seu pesadelo anárquico. Para os adultos, um breve sal de frutas e a busca pelo sofá mais próximo, onde roncarão como rinocerontes. Ao final do dia, a gurizada já não encontrará mais nada para destruir. Hora de acordar o papai, que, combalido pela ressaca que se avizinha, vai precisar de uma forcinha para chegar até o carro. Tchau. Domingo que vem tem mais.
Vejam como um simples almoço de família na modorra dominical serve como a metáfora perfeita para ilustrar este triste espetáculo. Bem-vindos à "guerra" de blogueiros contra jornalistas. E vice-versa ― como diriam os filósofos do clichê futebolístico. A polêmica até seria interessante, se ficasse na brincadeira. Mas é tola, exatamente porque se pretende séria. Embora este novo clássico da estupidez humana não seja tão vil quanto o da política (PT x PSDB ― ou Lula x FHC, como queiram), não deixa de expor o nosso maniqueísmo em sua face mais personalista e egocêntrica. Jornalistas e blogueiros que me desculpem pela acidez do título e pela ilustração, mas não fui eu quem inventou tais indumentárias e nem proclamou a "guerra".
A verdade é que essas não são apenas brincadeiras com um fundo de verdade. São carapuças que não poderiam ter servido melhor em seus respectivos. Tanto jornalistas quanto blogueiros parecem sofrer de uma enfermidade bastante brasileira dos dias atuais: a falta de senso de humor e, principalmente, de autocrítica. Essa aversão do brasileiro à crítica já foi abordada pelo Julio aqui e o Polzonoff foi ainda mais longe: "Escrevi um livro totalmente inspirado pela minha tendência à auto-chibata. Parti do pressuposto errado de que as pessoas que escrevem são capazes disso também. Quando, na verdade, a regra é a auto-congratulação e auto-condescendência". E assim o brasileiro segue, sempre levando-se demasiado a sério, engessado pelos mandamentos da cartilha politicamente correta.
Quem não se lembra do piquete de orangotangos formado por causa daquela campanha publicitária do Estadão? Mais surpreendente foi a adesão de bons blogueiros à barricada. Gente que estava a léguas de distância do macaco Bruno preferiu se juntar a ele. A campanha nada mais era do que uma ironia. Um pouco exagerada, talvez, mas era uma boa oportunidade para os blogueiros fazerem uma auto-avaliação, repercutindo o assunto na blogosfera e, de quebra, devolver a ironia ao jornalismo paleozóico. Mas era esperar demais dos simianos. Ficaram tão ofendidos que foi necessária uma retratação do Estadão e um debate para colocar panos quentes no "mal-entendido". Nem tudo, no entanto, está perdido. Parece que o senso de humor foi resgatado e, na Campus Party deste ano, jornalistas e blogueiros aprenderam a aceitar suas diferenças e seus infames apelidos. Ainda que com um sorriso amarelo, mas aceitaram.
Só ficou faltando a autocrítica. E já que nunca houve um voluntário para fazê-la, ofereço aqui os meus humildes serviços. Afinal de contas, sou blogueiro e trabalho em jornal, portanto, também faço parte da "guerra". E, como estou nessa "guerra" a contragosto, sinto-me no direito de destroçá-la. Só não vale vestir a carapuça de novo, combinado? Não quero que ninguém perca aquele senso de humor conquistado a duras penas.
Enquanto ambas as partes se autoproclamam como a salvação da lavoura, berrando as mesmas bravatas, trocando farpas e acusações, o leitor assiste impávido a este espetáculo dantesco onde só há perdedores. Mas, enquanto a "guerra" acontece, será que os jornalistas se desviam das pautas mais interessantes ou deixam de apurar devidamente suas matérias? Será que, pela "guerra", os blogueiros rejeitam uma leitura ou pesquisa mais aprofundada para redigir um post de maneira minimamente decente? É possível. É provável.
Saindo do pantanoso terreno dos achismos, vamos aos fatos. O jornalismo ainda não compreendeu o fenômeno da internet. É estranho que uma boa parcela de jornalistas ainda continue ignorando todo o potencial da web, acreditando que todas as respostas podem ser lidas somente no papel. Mas, se o jornalismo não precisa mesmo superar o período paleozóico, por que esses mesmos pterossauros, antes de alçar vôo, sempre dão uma passadinha lá no Google e nos portais? Apesar de tudo, alguns medalhões continuam olhando a internet com certa desconfiança e desdém. Enxergam-na apenas como mais uma ferramenta. Ou, em casos mais extremos, como uma empregada a seu serviço. A internet pode ser (e é) muito mais do que isso. Falta enxergar as inúmeras possibilidades que ela oferece.
De volta ao planeta dos macacos, certos blogueiros também não sabem (e não querem) ficar no seu galho. Nem bem chegaram ao mundo e já partiram para o confronto, querendo tomá-lo de assalto. Decretam, aos berros, o "fim do papel", a "democratização da informação" e outras pérolas do populismo on-line. Esquecem que, para tanto, precisam deixar de molhar as calças. E alguns homo sapiens da net não usam fralda com flocgel ultra-absorvente, logo, não há como limpar a sujeira que fazem. Mas estranho mesmo é tentar explicar por quê muito do que se vê nos blogs são reproduções ou opiniões sobre o que se acabou de ler na grande mídia.
Cômico e trágico. Um criticando o outro, mas, ao mesmo tempo, um usando o outro no trabalho diário. A metáfora inicial serviu apenas para mostrar que, embora "crianças" e "adultos" usem linguagens diferentes para se expressar e que, na maioria das vezes, não conseguem se entender, são "parentes" e precisam estar lado a lado. Esta é uma equação de difícil resolução e será muito difícil achar um consenso, mas dizem que sempre encontramos na simplicidade as respostas mais complexas.
De todas as questões levantadas até agora, só duas delas me parecem já respondidas de forma bem clara. A primeira é que um jovem escriba deve se iniciar na internet, ponto final. Através dos blogs, sites especializados etc., ele poderá experimentar seu texto e evoluir. Mais importante, terá a recepção quase que imediata dos leitores, o que poderá levá-lo a novos caminhos e descobertas. E tudo "di grátis". Se a empreitada der certo, é hora de arriscar algo mais ambicioso. Se não der, ninguém foi à falência e ninguém saiu ferido (a não ser as tradicionais viúvas e primas donas infiltradas na net).
A outra é que a internet deixou de ser uma ferramenta há um bom tempo para se tornar uma realidade, queiram ou não. Com seus pouco mais de 10 anos, ainda incipiente, mas uma realidade. O que falta ainda (e vai levar alguns anos para isso) é adquirir a mesma relevância e credibilidade dos jornais. E esse período de maturação pode ser mais curto do que acreditam os céticos. Ou mais longo, caso os blogueiros insistam em sua cruzada apocalíptica.
Isso posto, a conclusão ― ridiculamente óbvia, mas, ainda assim, ignorada ― é que existe conteúdo de qualidade tanto na web quanto no papel. Claro que existe muito lixo nos dois também, mas de nada adiantará cada um varrer o seu para debaixo do tapete e atacar o outro lado. É preciso separar a matéria-prima e o material reciclável daquilo que é lixo não-reciclável.
Espero que os jornalistas não fiquem chateados comigo. Afinal, sou apenas mais um filhote de dinossauro que acabou de sair da casca do ovo e está querendo avançar na pré-história. Gostaria também que os blogueiros, meus irmãos símios, perdoassem minha sinceridade, mas para arrotarmos caviar, precisamos comê-lo antes. Ah, não nos esqueçamos da fralda com flocgel!
Nota do Autor O conteúdo desta coluna e sua data de publicação podem ter sido mera coincidência ou fruto de uma teoria conspiratória.
Parabéns pelo texto e pela coragem! O que posso concluir da sua lucidez, com otimismo, é que todos sairemos ganhando nessa guerra, onde os cultos não dominarão os incultos (por serem cultos e não precisarem disso...), e o lixo, a História se incumbirá de reciclar e transformá-lo em algo que se aproveite... nem que seja para dar empregos a garis e pesquisadores.
A julgar pelo tamanho da Livraria Cultura, no Conjunto Nacional - fundada em 1948 pela alemã Eva Herz (1912-2001), que hoje conta com mais de 2 milhões de títulos, a leitura vai muito bem. Então, estamos ficando mais cultos(!), e críticos(!), e isso é bom pra todo mundo, e nossas escolhas se aprimorarão. Então, a guerra é santa, e todos sairemos vencedores, nem que nos sintamos derrotados pela seleção natural, tão cruel quanto necessária, e sobretudo inevitável, que colocará cada um no seu devido (e merecido) lugar... Um holofote no fim do túnel(?)... e, não é o trem...!
Reconheço que entrei com a mão pesada neste especial. Foi proposital. E não me excluí de nenhuma crítica que fiz. Minha intenção era apenas que levantássemos algumas questões importantes: precisamos desta "guerra"? O que ela nós trará de bom? A qualidade e o sucesso dos blogs implica necessariamente na morte dos jornais? Se o papel vai acabar ou não, o tempo dirá. Agora, não podemos nos gabar de nossa blogosfera. Não ainda. É muito imatura e os debates não conseguem fugir dos velhos maniqueísmos. Antes de reivindicarmos alguma coisa, precisamos fazer por onde e, acima de tudo, ter mais humildade. Claro que não me refiro a todos os blogueiros - apenas àqueles que, na falta de um assunto melhor, ficam conjecturando a destruição de seus inimigos imaginários para que possam "tomar ao poder". A blogosfera vai continuar crescendo, melhorando seu conteúdo e conquistando ainda mais leitores? SIM. Os jornais precisam morrer para que isso aconteça? NÃO. Uma coisa é independente da outra.
Primeiramente, Diogo, parabenizo pelo bom texto e pela excelente metáfora de abertura. Em seguida, gostaria de lembrar que, completando o que você mesmo disse, o caminho hoje é em direção a uma comunicação horizontal, reticular, em rede. Ou seja, os interlocutores na web não possuem mais lugar definido: ora receptores, ora emissores. E essa notícia é boa, para ambas as partes (blogueiros e jornalistas). Que façamos bom uso da comunicação contemporânea.