COLUNAS
Quinta-feira,
5/6/2008
Os Insones, de Tony Belloto
Gabriela Vargas
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Tony Bellotto pode ser visto como um cara de sorte. Além de ser guitarrista da famosa banda de rock Titãs desde os anos 80 e ter se casado com Malu Mader, talentosa atriz brasileira, ele se relevou um escritor com potencial na década de 90 ao lançar o seu primeiro livro: Bellini e a esfinge. Passados mais de dez anos e após o lançamento de mais quatro livros, dois deles continuando as histórias de Bellini, ano passado Tony lançou Os Insones (Companhia das Letras, 2007, 237 págs.).
O livro se passa, em grande e significativa parte da história, no Rio de Janeiro, entre a favela Morro do Café e os bairros nobres e vizinhos Leblon e Ipanema. É o relato de pessoas que se perdem em meio ao caos, ou talvez o usam para uma posterior transformação, que pode nunca ocorrer. Uma narrativa contada através de diversos ângulos e que se fecha nas mais diferentes situações.
Adolescentes idealistas que decidem ver o mundo por fora do quarto com ar-condicionado. Pais perdidos, ideais esquecidos. Violência pura e verdadeira numa favela onde quem manda é uma adolescente de dezenove anos. Desilusão. Muitas mortes. Alguma transformação.
Sofia. Menina de classe média, moradora de Ipanema, desaparece e ninguém sabe por qual razão: um seqüestro, perda de memória ou se realmente foi uma fuga... O pai, Renato, entra no seu quarto e descobre que a filha não gosta mais de U2 e do Bono Vox, mas que agora gosta do Subcomandante Marcos, de Che Guevara e ouve Tupac. Talvez a grande razão pela surpresa seja que Renato é separado de Lílian (a mãe de Sofia), há muitos anos mora em São Paulo e não costuma freqüentar aquela casa, que agora lhe parece tão estranha.
"― Por que a Sofia colocou a foto desse cara na parede?
― Ela voltou mudada daquela viagem a Porto Alegre, no Fórum Mundial. Um guerrilheiro mexicano é o ídolo dela agora.
― E o Bono Vox? ― perguntou Renato.
Lílian olhou para ele sem saber o que dizer. Então se abraçaram e choraram juntos."
Samora. Adolescente idealista de dezessete anos, negro, classe média alta. Morador do Leblon, com pai desconhecido. A mãe, casada com um estrangeiro. Ele sempre estudou nas melhores escolas, leu muitos livros e foi sedento por conhecimento. Aos poucos descobriu Tupac, Racionais MC's, Che Guevara, Subcomandante Marcos e outros tantos que se tornaram sua base. Ele decidiu mudar a sua vida, quem sabe o mundo. Virou um idealista. Foi ao Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, e lá conheceu uma menina muito diferente, Sofia, mas já fazia cerca de um ano que isso havia acontecido e eles não se viam. Quando a mãe viajou com o padastro para a Europa, ele decidiu que era a hora de fazer uma revolução. Foi morar no morro. Deixou pra trás o ar condicionado, a vida mansa e foi realizar.
"Eu vivia uma vida de merda, um burguesinho preto que passava o dia inteiro lendo Oliver Twist deitado no quarto com o ar-condicionado ligado. (...) Com o tempo, fui conhecendo outros livros. Palavras mais perigosas. Mas continuava deitado, com o ar ligado. (...) Chega. Precisava de ação. Resolvi encarar a vida, fazer uma guerra, mudar o mundo. Contaminar a atmosfera com meu futum de crioulo."
Mara Maluca. Meio mulher, meio homem. Ser indefinido. Uma lésbica de dezenove anos e muitas mortes no currículo. Dona do Morro Café. Uma durona que prega a sua lei. Não aceita estupro nem roubo na favela. Mata assim como assiste televisão, com uma indiferença dilaceradora.
"Meio feia, meio bonita. Expressão dura, rosto marcado. Camisa branca de manga curta aberta até a metade, os peitos pequenos quase aparecendo. Cordão dourado no pescoço. Calça jeans, tênis Nike e um Rolex no pulso. Duas Sig-Sauers douradas enfiadas na cintura."
Esses são os adolescentes, os tais insones, "perdidos, mas acordados", que tornam a história fascinante do começo ao fim. Difícil de esquecer, mesmo após o término da leitura. Uma realidade que está perto, ou, talvez, dentro de nós.
Toda a história que se desenrola quando esses jovens se encontram na favela é fascinante. As certezas são muitas, mas passam a desmoronar na medida em que Samora e Sofia percebem que nem sempre tudo é como nos livros. Uns morrem, outros matam, ideais são perdidos, ocorre transformação.
Renato, o pai de Sofia, que de publicitário bem-sucedido se descobre um perdido, talvez outro insone. O irmão da menina, Felipe, que de camisetas internacionais de futebol passa a colecionar armas. A mãe, que vive à base de calmantes. Os policiais, que estão atrás de Sofia, Samora e Mara Maluca por motivos bem distintos. São tantos os personagens e é tão grande sua importância que fica difícil descrever em palavras.
A favela é vista por outra ótica. Apesar de o autor nunca ter sido um favelado, ele faz com que a história seja verossímil e que os personagens cumpram os seus papéis.
"A favela, pensou Renato. Ele conhecia Paris, Nova York, Praga e Barcelona. Conhecia o deserto de Atacama e o deserto de Sonora. Conhecia o Louvre, o Smithsonian Institute e o Epcot Center. A Catedral de Brasília. Ele conhecia as ilhas Mauricio e as ilhas Fiji. Bora-Bora, Morea, Bonito, Itacaré, Honolulu, Las Vegas, Napa Valley, Londres, Eoma e o Vaticano. Conhecia a Toscana. Costa Amalfitana. Ele conhecia o Ibiza. Chapada dos Guimarães. Buenos Aires, Angra dos Reis. Nunca tinha entrado numa favela."
Tony Bellotto escreveu um livro ímpar. Mesmo para aqueles que não gostam do gênero policial ― aliás, tenho minhas dúvidas se pode ser considerado assim ―, é uma história que cativa o leitor. Um livro simples e verdadeiro. Com uma narrativa intensa que desliza pelos olhos como um filme bom. Pretendo lê-lo e relê-lo até cansar.
Para ir além
Gabriela Vargas
Porto Alegre,
5/6/2008
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