"O que faz um cartunista?". "Dá pra ganhar a vida assim?". "Existe curso de caricatura?". Esse é o questionário básico que aprendi a responder ao longo de anos trabalhando como caricaturista em eventos. E antes que entremos nesse mundo, deixe-me respondê-lo para que nenhum traço fique fora do papel. Bom, ser cartunista é trabalhar o cartum em suas diversas formas: charge, caricatura, ilustração, tiras ou quadrinhos. Sim, dá pra ganhar a vida, desde que você não abdique da prática incansável, da leitura diária e da observação acurada. Enfim, desde que você se dedique (não, desenhar não é só diversão). Sim, existe curso de caricatura, que pode ser uma boa escola para o aperfeiçoamento, mas ninguém se torna um profissional sem talento e certa dose de teimosia.
Comecei a dibujar como profissional praticamente na mesma época em que as comportas da internet eram liberadas aqui no Brasil. De lá pra cá, vários segmentos foram ampliados e outros tantos foram descobertos. Um segmento que se popularizou de maneira considerável e permitiu que vários artistas pudessem viver exclusivamente de sua arte (entre eles, este colunista que aqui escreve) foi a caricatura ao vivo. Em festas particulares, em festas de empresas, aniversários, congressos, feiras, stands, casamentos, enfim, todo e qualquer tipo de evento, minha missão era divertir as pessoas.
Este segmento em especial foi importante para aproximar a arte da caricatura (e o humor gráfico de modo geral) do grande público. Se antes a caricatura era restrita às publicações em jornais, livros e exposições ― e uns poucos abnegados se arriscavam a ganhar a vida como artista de rua ―, a internet veio a derrubar mais esta barreira. Ao caricaturista que queria se aventurar nessa seara, bastava divulgar seus serviços através de um site pessoal e deixar que o Google fizesse as devidas apresentações.
Este é um trabalho que exige grande habilidade e fluência no traço do artista. Uma arte extremamente sofisticada que não se resume a ressaltar os "defeitos" da pessoa, como muitos acreditam, mas sim de traduzir em traços suas características mais marcantes. O exagero neste traço é a interpretação do artista para aquele rosto. E é preciso ter cuidado, pois existe uma linha bastante tênue entre o humor e a ofensa. Nosso trabalho é encontrar o humor no desenho e saber captar todas as pistas que seu caricaturado lhe dá. Uns têm maior senso de humor e querem ser chacoteados. Outros, nem tanto.
Não é regra, mas pode-se zombar mais de homens, enquanto que, nas mulheres, os traços são usados com maior parcimônia. As mulheres têm uma maneira bem peculiar de encarar a caricatura. Umas arrumam o cabelo, outras procuram fazer uma pose onde eu não poderei encontrar "defeitos". Nada disso fará diferença. Elas podem tentar dificultar nosso trabalho, mas o resultado final será sempre uma caricatura, ainda que disfarçada de retrato estilizado. Uma coisa importante é que, nunca, jamais, sob qualquer circunstância, deve-se exagerar as rugas numa mulher, qualquer que seja a sua idade. Se fizer isso, o caricaturista poderá até colocar em risco sua integridade física. A saída aí é ele próprio fazer algumas aplicações de Botox manualmente. Ser mais condescendente com eventuais rugas não impede o caricaturista de ser honesto, sabendo preservar as características da pessoa. O toque de mestre é realçar os acessórios: brincos, colares, roupas ou penteados (que passam em branco aos olhos dos maridos) fazem a alegria de esposas e namoradas presentes. Elas adoram. Mas não os culpo... Provavelmente eu também faça isso com a minha namorada, vai saber...
Nesses eventos, encontro diversos tipos de pessoas, dos mais difíceis aos mais fáceis de caricaturar. As reações também são bastante variadas. Da mesma maneira que uns fazem fila pra ter sua caricatura, outros têm verdadeira fobia ao se imaginarem ridicularizados em traços. Estes nos olham com desconfiança, como se representássemos uma ameaça ao seu bem estar social. Outro tipo curioso (e bastante comum) é aquele que, a princípio, não quer a caricatura e só fica rodeando a área, como um urubu vacilante. Mas depois de algumas (ou várias) doses, chega lá de peito estufado e brada o grande clichê caricaturístico dos eventos: "Me deixa bonito, hein!". Esses são os melhores de "carregar" bastante no traço. Não há risco de não gostarem. O nível de álcool em seu sangue lhe garantirá boas risadas.
Além de pagar bem, este é um trabalho que dá muito prazer ao profissional. Mas também tem os seus percalços. Certa vez, eu fazia caricaturas num desses camarotes cheios de "vips". Como meu contratante era uma marca de bebida alcoólica, a idéia era caricaturar celebridades numa campanha que pregava o consumo responsável. Uma das ordens era vetar, sob qualquer hipótese, as caricaturas para menores de idade. Em determinado momento, surgiu um homem querendo que eu desenhasse seu filho de 10 anos. A coordenadora do projeto estava por ali e logo os dois começaram a discutir de modo exaltado. O homem, que trabalhava num famoso programa de auditório, estava mesmo determinado a ter a caricatura de seu filho. Dinheiro parecia não ser o seu problema. Ao contrário, era a solução. Na primeira oportunidade em que a coordenadora se afastou de lá, ele se aproximou e colocou uma nota de 100 reais no bolso do meu macacão (sim, eu estava "a caráter"). Eu sempre tinha ouvido falar que artista tinha fama de vadio, maldito, que vive sempre à margem da sociedade. Mas foi neste momento que senti o que era ser um artista prostituto, no sentido mais literal (e vulgar) da palavra, como uma espécie de stripper do traço. Só que, em vez de "rebole para mim", a frase era "desenhe o meu filho". Antes que minha mão começasse a "rebolar" no papel, esta situação precisava ser contornada. Sem melindres, devolvi o dinheiro e arrumei um papel diferente (sem o logotipo da empresa) para fazer a caricatura. Assim, o desenho não estaria vinculado à campanha nem à marca.
Muita gente ainda não aprendeu a entender e interpretar a caricatura. Pedem para eu fazer sua "charge" (incrível como até hoje confundem as duas coisas!). Uns chegam até a pedir sua "foto". Uma vez, um menino se aproximou enquanto eu desenhava e perguntou se eu fazia "retrato falado" para a polícia. Percebi que aquilo era totalmente novo para ele e, pacientemente, me dispus a explicar a caricatura. Diante da nova lição, ele profetizou: "Entendi. É um retrato mal-falado".
Mesmo com algumas idiossincrasias e situações engraçadas (ou esdrúxulas), essa deliciosa arte de distorcer os traços da pessoa e vê-las rirem de si mesmas é uma das coisas que mais satisfazem qualquer artista. A caricatura ao vivo é um grande atrativo para todas as idades, tanto que já trabalhei com todos os públicos, do infantil ao de terceira idade. O sucesso é imediato a partir da primeira caricatura que você faz. Nesse momento, a fila já começa a andar e você só vai parar dali a uns 40 ou 50 desenhos. O processo todo é tanto cansativo quanto gratificante. É durante esses trabalhos em eventos que ouço com mais freqüência as perguntas que descrevi no primeiro parágrafo. Curiosos e observadores ficam ao redor, contemplando. É como se as pessoas quisessem ser você naquele momento. Ficam admiradas com a nossa rapidez em fazer uma caricatura em tão pouco tempo (quatro ou cinco minutos). Na verdade, somos obrigados a ter essa fluência para poder atender a toda a demanda. Isso faz com que o processo seja muito natural pra nós, dando até a impressão de que é fácil, escondendo o longo processo de aprendizado ao qual nos submetemos para chegar a esse resultado.
Eu, caricatura
Sempre tem aquele insatisfeito que gostaria de ver seu "algoz" caricaturado da mesma maneira, como um sentimento de vingança. Quando me lançam o desafio, aceito na hora, pois não encaro a caricatura como depreciação e, sim, como a apreciação da pessoa através do humor e do traço. Eis que eu estava em um desses salões de humor, onde sempre encontro vários amigos e colegas de profissão. Logo após a exposição, conforme manda a tradição, parte da trupe se reuniu em uma lanchonete para confraternizar e fui alvejado quase que simultaneamente pela arte de dois grandes amigos.
No desenho maior, Spacca usou seu traço estiloso e seu humor refinado para sugerir uma reconciliação entre eu e o presidente. Você pode ver pela minha expressão de constrangimento no desenho que isso dificilmente acontecerá. No desenho menor (feito em um guardanapo), Humberto Pessoa seguiu pela mesma via, mas de uma maneira bem mais direta e algo violenta. Uma espécie de rito vodu/vampiresco. Curioso foi que Spacca e Humberto estavam em mesas diferentes e resolveram me "chargear" ao mesmo tempo, cada um à sua maneira. Não pude conter o riso, pela incrível coincidência de temáticas tão parecidas. Percebe-se que ambos faziam clara referência ao meu livro, onde ofereci uma visão não muito amigável sobre o primeiro mandato do governo Lula.
De qualquer maneira, esse exemplo serve para derrubar o mito de que um caricaturista vive exclusivamente de fazer troça da vida alheia. Ao contrário, guardo todas as caricaturas que fazem de mim em uma coleção. Sinto-me honrado em ver gente "exagerando meus defeitos".
Este é um assunto que sempre tive curiosidade de saber e, casualmente, encontro: de uma forma elegante, informativa e até mesmo divertida... Este artigo é um bom exemplo da diferença entre cultura/informação e inutilidade...