Odeio você, atrás de mim, do lado esquerdo da escada. Você. Você é tudo o além de mim, o que não sou eu, o que é oposto. Na plataforma. Olhares petrificados. No jornal - Mazar-e-Sharif sofre mais uma leva de ataques. Antraz mata mais um na Flórida. EUA podem lançar bônus de guerra. Conflito causa prejuízos no turismo americano. Nova York conta seus mortos. Nova York... World Trade Center. O mundo não é mais o mesmo, quem poderia apostar no poder do acaso para desescadear tal mudança? O acaso de dois aviões colidindo com duas torres gêmeas no dia 11? E o azar, o profundo e indizível azar das pessoas que estavam no 101o andar? Não, não. Nada disso. Tudo foi milimetricamente calculado. O mundo já era o mesmo.
E eu odeio você.
Sempre odiei.
Você e eu entramos no vagão do metrô. Seis da tarde. Gravação na Jubilee Line. Odeio essa voz empostada da gravação.Green Park, change for Victoria Line. Você está atrás de mim. Sinto sua presença que me incomoda. Você é fétido, você é horrível. Você é um pesadelo. Pesadelo viajando, traveling. Meus olhos deslizam pelo túnel escuro. Osama Bin Laden está no Afeganistão. Escondido. Talvez, esteja na China. Talvez, no Tadjiquistão. Ninguém sabe. Osama Bin Laden é o inocente.
Você é o culpado.
Apenas você, sombra execrável.
A Grã-Bretanha é o maior aliado dos Estados Unidos. A Grã-Bretanha tem uma das maiores colônias muçulmanas do mundo. Aqui há a mesquita no Regent Park. E outra em Brick Lane. A Al-Qaeda tem ramificações aqui e em mais de 40 países. Você se sente em casa. Em casa embaixo da terra. Em casa nas nuvens, nos arranha-céus-ícones sagrados do poder de uma civilização imbatível de não-evil-doers, de edifícios como o World Trade Center.
Como o Canary Warf.
Prédio alto, Torre de Babel.
À minha frente, albaneses. Ao lado, russos. À direita, americanos do Texas. À esquerda, islandeses. O mundo é alienígena. Eu odeio você porque você é diferente demais. Você não fala minha língua. Você não compreende minha religião. Você tem pele escura. Você fuma maconha. Você parece se sentir atraído por mim. Eu tenho nojo de sua presença. Você é doente, você pertence a um mundo doente, você é demente, por quê me segue, por quê, por quê? Canary Wharf. Construção imensa de concreto e metal. Milhares de engravatados. Sikhs, senegaleses, costarriquenhos. O metrô parado na plataforma. Seis e quinze.
O mundo já era o mesmo.
Agora, é mais do mesmo.
A plataforma vazia. Atrasos, signal failures. Stratford station closed. Mundo pequeno. O trem começa a ficar lotado. Saio da estação. A loira fria gorda com sua saia azul marinho sentada suando pingando te observa com olhos bem abertos, franzindo a testa. Está aliviada que eu tenha te levado para outro lugar. A estação não tem lixeiras. Bombas explodem. Bombas que explodem. Bombas que explodem e matam. Bombas que explodem e matam e espirram sangue por todos os lados. Bombas que explodem e matam e espirram sangue infiél por todos os lados, em cada canto do mundo. Em cada canto do mundo. Em cada canto do mundo há uma bactéria. Em cada canto do mundo há uma bactéria antraz esperando para consumir sua pele. Consumir sua pele como ácido. Chuva ácida. Desaba um temporal gelado nas Docklands de Londres. Meus pés se ensopam nas poças.
Você me segue de perto.
A guerra está apenas começando. A guerra entre o sim e o não. O sim e o não o que significam? Significam a mesma coisa, sob dois pontos de vista diferentes. Mas isso não importa, não importa nada, o que importa é que eu e você não sabemos viver sem ter um oposto. A guerra entre o bem e o mal, isso é fascinante, isso é natural. Bem ou mal, mal ou bem, você vai me matar se eu não te matar primeiro. 4 mil e 800 desaparecidos sob os escombros do World Trade Center. Imagens na TV diretamente de Peshawar, no Paquistão - pessoas barbudas e sujas gritando de prazer ao comemorar o império num momento difícil. Imagens na TV incompreensíveis demais para o senhor Bird de Santa Fé, ou para o senhor Whiteman de Phoenix. Por que me odeia? Por que? Pois eu te odeio, eu te odeio, te ODEIO, ODEIO. No ponto de ônibus, no lusco fusco. O poste de brilho laranja-negro encoberto pelas gotas pesadas, prismas dissociando a luz da noite recém-chegada, as cores do Reino Unido nos olhos. O ônibus double-decker vermelho chega. Pessoas de pé, sentadas, ajoelhadas, chorando, rezando, dormingo, namorando, cantando. O cheiro é uma mistura de vômito com maconha, gases intestinais e perfume. Uma criança chora pavorosamente. Estou completamente molhado, sem espaço para mexer minhas pernas, a água escorrendo pela minha testa, o sobretudo surrado úmido colado na minha camisa, vista embaçada de cansaço após doze horas e meia lutando pela minha sobrevivência, dor de cabeça, vontade de urinar, sem nem a mais remota lembrança do que significa ter prazer na vida, velho com menos de 30 anos. Você não tem piedade de mim, eu não tenho de você. Para mim, basta.
Viro-me. Olho no olho. Dente por dente. Eu sou você, você sou eu.
A guerra (contra o invisível) está só começando. Avanço em direção ao motorista. Saco meu revólver do sobretudo. Encosto o revólver na cabeça do motorista. Faço-o sair de sua rota. Pânico no ônibus. Olho para trás - o maltês agarra a etíope. O argentino acerta um soco na cara do malgaxe. O chinês cospe no rosto do coreano, que por sua vez urina no japonês. Todos se odeiam. Todos querem espaço para respirar. Espaço para mexer o pé. Para tirar o sobretudo. Todos falam lindas línguas, têm maravilhosas culturas, tradições seculares, Deuses sagrados. E todos se odeiam. E entram em confronto direto. O motorista grita. O ônibus viaja a 40, 50, 60, 70 milhas por hora pela avenida vazia. Não estou pronto para não ter um oposto. Preciso odiar. O argelino arranha o rosto do alemão. O sunita arranca com os dentes a orelha do xiita, que grita Alá. O motorista do ônibus grita. Eu o faço parar à beira do rio. Bem à beira do rio. O fétido rio.
Desço do ônibus, sento-me às margens do Tâmisa. A chuva de repente parou. Você e eu olhamos para a outra margem.
O queniano, o equatoriano, o neozelandês e o saudita decidem, após dois minutos, me seguir. Eles se sentam ao meu lado, olhando para a outra margem do rio.
O palestino, hesitante, tira as mãos do pescoço do israelense e aponta para o outro lado do rio.
O greco-cipriota e o turco-cipriota descem do segundo andar do ônibus em silêncio e observam estupefatos.
Até o afegão de origem uzbeque, que estava ameaçando o filipino, larga sua adaga e pula para fora do coletivo.
Eu vejo a lua cheia, branca, forte, limpa, inteira e indivisível, brilhante iridescente, abrir caminho por entre as nuvens, milagrosamente, misteriosamente, inexplicavelmente, rapidamente.
Eu estou deste lado do rio. Do outro você não está. Mas estamos todos sob a mesma lua.
Arcano, como você é romântico. No sentido mais doce desta palavra. Sei que vivemos todos sob a mesma Lua. E, lendo seu texto, desejo, desesperadamente, acreditar que existirá o tempo em que pararemos todos pra contemplá-la do outro lado do rio. Abraços, Ana