COLUNAS
Quarta-feira,
13/8/2008
Violões do Brasil
Rafael Fernandes
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O violão é um dos símbolos da música brasileira. Não vejo outro país no mundo que tenha uma ligação tão intensa com esse instrumento ― nem a Espanha, com o flamenco. Desde Villa-Lobos, passando pelo inevitável João Gilberto até as rodinhas de violão e luais, é um marco. Em qualquer lugar sempre tem alguém com um violãozinho. Não é à toa. É um instrumento barato, de fácil transporte e que se resolve: basta um modelo com cordas (afinadas, preferencialmente) que o som está feito. Pode servir de acompanhamento ou solo; pode fazer melodia, harmonia e ritmo. É também um instrumento que se encaixa bem ao corpo e nos dá a sensação de profunda ligação ― para tocar, damos um "abraço" nele. É um companheiro, sempre. Quando bem executado é irresistível seu som. E desde 2005 foi contemplado com um livro acompanhado de DVD, Violões do Brasil (Editora Senac São Paulo, 2007, 236 págs.), organizado por Myriam Taubkin, com informações preciosas sobre o instrumento; no ano passado foi relançado em versão ampliada.
Misto de pequena enciclopédia, perfis, crônicas, fotos, vídeos e listagem de músicos e luthiers brasileiros, faz um belo apanhado da história e importância do instrumento no país. Apresenta nomes vitais na escala evolutiva das 6 (ou 7) cordas. Logo no início do livro conhecemos a figura de Zé Lansac, que dizem ter sido o maior violonista brasileiro dos anos 20 aos 40, sendo elogiado por Canhoto e até Andrés Segovia, mas que teria ficado longe do grande público por sua "modéstia e desinteresse em se profissionalizar". Em seguida, um breve histórico do instrumento mostra como a sua chegada no Brasil é um tanto nebulosa. Há quem afirme que foi trazido pelos jesuítas; outra corrente defende que veio junto com ciganos fugidos de Portugal.
Violões do Brasil tem a grande vantagem de ser como um guia: não é necessário ler de uma única vez, pode-se abrir em certa página e se ater a um só perfil. Ficamos sabendo da transição do piano como o instrumento mais popular do país para o violão, que é mais barato e mais prático, o que proporcionou o surgimento dos grupos regionais que acabaram substituindo boa parte das orquestras de rádio. Passamos por nomes amplamente conhecidos, outros nem tanto, mas todos com grande relevância; notamos a evolução do violão, de simples acompanhante até chegar a instrumento de destaque. Entre os nomes apresentados estão Canhoto, Dilermando Reis, Villa-Lobos, Dino 7 Cordas, Guinga, Baden Powell, Zé Barbeiro, Zé Menezes e muitos outros.
Um bom exemplo da importância do livro é que podemos conhecer melhor a história de músicos como Meira, figura mítica do violão nacional, um professor cujos métodos até hoje são lembrados e utilizados. Entre outros, ensinou "apenas" Baden Powell e Raphael Rabello. Tocou em diversos grupos e gravou com inúmeros artistas (como Carmem Miranda e Sílvio Caldas), mas nunca fez um disco-solo. Sua história aparece numa breve biografia e em texto de Mauricio Carrilho, outro grande nome do violão nacional, também aluno de Meira. É destacada sua importância não só como músico, mas principalmente como professor na formação do violão brasileiro moderno, com uma abordagem diferenciada; além disso, Carrilho conta deliciosas histórias sobre o mestre. Outros textos interessantes são de Turíbio Santos sobre o violão de Villa-Lobos, explicitando, inclusive, a relação entre ele e outro mito do violão, Andrés Segovia. E o de Luis Nassif sobre Agustín Barrios, um paraguaio que estudou diversas vertentes do violão mundial (de Bach ao choro, passando por diversos ritmos sul-americanos) criando um caldeirão sonoro importante para a formação do violão no Brasil.
O DVD ― que é dividido em "Os Mestres", "O Violão" e "O Violonista" ― apresenta bom conteúdo, embora de produção bastante simples, com uma câmera apenas, por vezes balançando, com algumas edições assustadas. Mas consegue mostrar a imensidão do violão: instrumentistas de diversos cantos do país, de diversas escolas; da técnica mais próxima do clássico ao auto-didata. E é possível notar que mesmo nas mais distintas escolas há ligações, intersecções na formação e execução. O mais divertido é que a trajetória, características musicais e causos desses mitos e a influência que geraram vão sendo verbalizadas pelos músicos, o que dá um melhor sabor às histórias.
Em "Os Mestres", aparece um depoimento de Sérgio Abreu (que agora é luthier, mas formou com seu irmão Eduardo o lendário Duo Abreu), no qual conta como sempre gostou da música, mas mais de tocar em casa. As turnês, entrevistas e afins o cansavam, por isso optou pela construção de violões. Depois são listados importantes nomes do instrumento, com alguns curtos comentários dos músicos de hoje e alguns estudiosos (como Jairo Severiano) sobre a história dos mestres. Destaque para as participações de Turíbio Santos, que explica e mostra no violão como as técnicas e escolas foram sendo construídas. Nos depoimentos, algumas constatações interessantes. Garoto ― de grande técnica e um trabalho harmônico forte ― é considerado, por Turíbio Santos e Carlos Lyra, um ponto de partida para da bossa nova que ainda afirma que a música "Duas Contas" (de Garoto em parceria com José Vasconcelos) é a base para a estética da bossa. Baden Powell é "o mais completo" nas palavras de Jairo Severiano e "figura paralela (...), herdeiro e criador" de uma escola, na opinião de Turíbio; "o trabalho mais revolucionário", na definição de Maurício Carrilho. Turíbio Santos ainda afirma que João Gilberto seria a síntese do que ocorria no violão à época e que talvez não tenha criado, mas certamente "padronizou" a bossa nova.
Já na parte "O Violão" os músicos dão seus depoimentos sobre a história e desenvolvimento do violão brasileiro e como se relacionam com o instrumento. Lula Galvão o considera um mistério, com mais descobertas a cada dia; Antonio Madureira ressalta sua relação desde criança e de como o usa para realizar seus sonhos e fantasias; Fabio Zanon diz que o violão "é tudo"; Zé Menezes exagera e diz que é bonito até mal tocado. Nessa parte também é apresentado o trabalho de luthieria ― o artesanato de fazer um grande instrumento, bem como as particularidades de tocá-lo. Ainda se destaca a necessidade de saber tocar o violão, um instrumento em que os músicos precisam criar as notas, e suas diferentes formas de expressão, com mais força, mais delicadeza, como fazer a nota soar bem etc.
Na última parte do vídeo, "O Violonista", notamos que a solidão é uma constante para os músicos, pelos estudos, viagens, hotéis e apresentações. Alguns acham terrível, outros até gostam, e há os que acham que a própria presença do violão minimiza o estar só. E há ainda a falta que o violão faz quando quando não se toca, seja pela "saudade" pura e simples, seja pelas conseqüências na execução pela falta de treino ― já que o estudo constante e a repetição são a base para um grande instrumentista. E notamos algumas diferenças de ritmos que o violão engloba e suas misturas.
Vejo como um dos grandes momentos do DVD Guinga assumindo que um dia não conseguiu tocar uma música própria, por estar sendo executada mais rápida que suas possibilidades e faz um brilhante comentário sobre a velocidade: "(...) tem músico que não consegue ser veloz, e aí fala assim 'ah, música não é olimpíada'. Isso é uma desculpa. Que o cara às vezes dá porque não consegue ser veloz e tripudia sobre a velocidade. A velocidade é uma maravilha. O músico que tem velocidade ele já saiu com um corpo e meio de vantagem na frente. Mas só não pode virar escravo da velocidade (...)". E cita Baden Powell e Helio Delmiro, velozes, técnicos, mas que não perderam a expressão.
O livro e o DVD Violões do Brasil são um bom início para quem quer conhecer e estudar o mundo do violão. Não é de grande profundidade, mas também não é sua intenção. É um bom apanhado de informações, apresentando com competência um panorama do violão moderno no país, suas diferentes abordagens e estilos e como é sua relação com os músicos. Consegue retratar bem a riqueza, diferenças e semelhanças de um dos instrumentos mais importantes ― senão o mais ― na construção da música popular brasileira.
Para ir além
Rafael Fernandes
São Paulo,
13/8/2008
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