O que vem depois do sexo? Bom, depois do sexo vem o sono, o ronco, xixi, papel higiênico, chuveiro. Alongamento. Uns tragos. Água, suco, Gatorade, Coca-Cola, vinho, uísque. Chocolate ou, dependendo da fome, um sanduba. TV. Olhar pro teto, pensar, pensar muito ― conversar, jamais. Som de porta batendo, chave balançando, arrancada do carro e silêncio. Ou quem sabe vem uma troca de olhares, cócegas, sexo de novo, abraço e silêncio a dois. Amor. Depois do sexo, amor? De acordo com uma série de padrões, o "normal" seria o contrário, não? Uma paquera ou romance culminar no sexo, sendo ele então o ponto alto da união de um casal ou apenas a realização do objetivo de uma noite. Bom, cada um tem suas mais diversas pretensões em uma transa, mas depois de ter atingido a satisfação plena, o que resta?
Quando o sexo está em evidência em alguma obra literária, não raro se torna o protagonista, diferente do que acontece em Depois do sexo (Record, 2008, 320 págs.), romance do gaúcho Marcelo Carneiro da Cunha. No livro, ele é o ponto de partida e, depois de disparado o gatilho, o sexo volta para debaixo das cobertas. O que interessa não é necessariamente como se chegou à relação sexual ou como ela se procedeu (afinal, os contos eróticos, livros de auto-ajuda e afins estão aí para dar conta disso). O que parece instigar o autor são os possíveis desdobramentos do sexo, já que em tempos em que não há mais espaço para pudores e preconceitos, é um assunto recorrente, abordado de mil maneiras pela mídia e cada vez mais supervalorizado (ou banalizado?). Não pense também que o livro apresenta a descrição de uma série de possibilidades práticas pós-coito, como fiz no início da coluna. Marcelo ultrapassa o sexo e vai além.
O romance é narrado em primeira pessoa alternadamente pelos três personagens centrais: Matias, um médico cirurgião, Érica, uma DJ, e Márcia, uma juíza. Como um truque típico do cinema, as histórias começam sem ter ligação uma com a outra e é só a partir do desenvolvimento de cada enredo que os personagens vão cruzando seus caminhos. Por mais que este recurso já tenha sido utilizado na literatura e não seja lá uma grande novidade, neste caso funciona muito bem, pois o leitor consegue ter uma visão panorâmica sobre as histórias, com pontos de vista diversos de cada um, podendo montar o mosaico completo em sua imaginação. Quando um livro aborda a temática de relacionamentos amorosos, fica ainda mais interessante o efeito, pois se consegue entender o que cada personagem pensa e sente sobre uma mesma situação, facilitando a compreensão sobre desencontros e conflitos, por exemplo.
Matias era um cirurgião com uma carreira bem sucedida até o momento em que um paciente morre na mesa de operação e ele se vê obrigado a se afastar da prática cirúrgica, pressionado pela possibilidade de seu antigo hábito de cheirar cocaína nos tempos de residência ser divulgado no meio hospitalar. Ele passa então a assumir o cargo de paramédico, trabalhando em uma ambulância. Sua vida de luxo e conforto, proporcionada graças ao bom salário de médico que tinha, desmorona, ao mesmo tempo em que seu casamento chega ao fim. Os novos colegas de trabalho e a rotina corrida se mostram mais divertidos do que esperava, e em uma das noites que passa jogando conversa fora no hospital conhece Érica. A jovem DJ se tornou amiga dos enfermeiros e motoristas de ambulância devido a duas tentativas de suicídio, que a levaram a conhecê-los. O médico e a moça passam a ter um caso, estabelecendo uma relação baseada quase que exclusivamente no sexo. Érica vivia reclamando de uma decepção amorosa que desencadeou nela sua vontade de ir "além", levando uma vida intensa, regada a muito sexo e drogas.
Em meio a tantas novidades, Matias passa por uma situação inusitada: testemunha um atropelamento e resolve depôr a favor da inocência de um motorista de ônibus, que tinha contra si todas as evidências mostrando sua culpa. Márcia, a juíza do caso, se encantou pela atitude do médico e o chamou para sair, engatando um romance com ele. Ambos desiludidos com os relacionamentos, redescobrem juntos o prazer da vida de casal. Porém, quando Márcia insiste em perguntar sobre o caso que o fez abandonar a cirurgia e ele revela seus problemas com a cocaína e assume uma possível culpa, surge a dúvida se devem continuar juntos ou não. Afinal, ela é uma juíza e não conseguiria suportar viver com alguém que julga culpado.
Com 15 livros publicados, entre eles Antes que o mundo acabe e Insônia (que estão sendo adaptados para o cinema), neste último romance o autor não se propõe a julgar ou discustir a banalização do sexo na vida das pessoas hoje em dia. Tampouco fez uma ficção romântica-melosa em que se enaltece acima de tudo o amor, transformando-o em um prêmio disputado ― ou melhor, em um campeão, que sempre vence e supera tudo e todos no final. É bom ressaltar que em Depois do sexo o amor não deixa de reinar, mas de uma forma sutil, real, sem devaneios nem pitadas de contos de fadas. Quando se termina o livro, a sensação de que "sim, o amor existe e é possível" domina, mas teus pés estão bem presos ao chão. O romance fala de questões mais profundas de um relacionamento, aborda outros dramas em que o sexo é apenas pano de fundo. O que geralmente rege as relações aparece como um dos fatores, não como o fundamental. O sexo norteia toda a trama, é o que relaciona as histórias e é por onde o leitor se guia, mas se surpreende, pois o caminho vai além, abordando outros conflitos e temas, como a depressão, o suicídio, tráfico de drogas, a ética e a moral. O sexo é o percurso, não o destino.
Querida Débora, eis aqui outro romance indiscutivelemente imperdível registrado no Digestivo. Desde que eu comecei a freqüentar este site, a minha agenda de títulos de romances a serem adquiridos num futuro próximo ou distante se avoluma dia a dia. Este, penso eu, trata-se de algo imperdível! Só as maquinações envolvendo a tríade (pergunto, reflito: afinal, por que sempre uma tríade?!) dos protagonistas fazem valer a leitura. Nas entrelinhas deste romance o Desejo certamente deve se insinuar a todo momento. Obrigado pela dica!
Abraços
do
Sílvio Medeiros.
Campinas, é primavera de 2008.