Há muito tempo que a televisão aberta, para mim, se resume a jogos de futebol e programas jornalísticos. E isso nada tem a ver com preconceito ou postura blasé. A televisão brasileira é suficientemente ruim e conhecida para dispensar, de minha parte, explicações sobre a qualidade de seus programas.
Mas em 2008 foi justamente um produto de nossa tão contestada, amada e odiada teledramaturgia que me fez esquecer que a TV brasileira é ruim e ― o que é mais bacana ― que ela pode ser boa, mesmo com um jeitão de cinema. Estou falando de Queridos amigos, minissérie da Rede Globo baseada no livro Aos meus amigos, da escritora e roteirista Maria Adelaide Amaral.
A minissérie me chamou a atenção, basicamente, por duas razões: primeiro, porque fugiu, tematicamente, dos anos 60/70, período perseguido com verdadeira obsessão por escritores e roteiristas. As quatro décadas de 1968, este ano, monopolizaram as atenções, e não encontrá-las na televisão aberta foi um alento para os telespectadores e um ponto positivo para quem as deixou de fora; segundo, porque Maria Adelaide conseguiu achar, dentro da história, pontos de convergência entre tipos tão distintos e caricatos (a hippie esotérica, o gay elitista, o professor de literatura romântico e sem dinheiro, o escritor fracassado) sem que isso soasse forçado ou inverossímil.
O êxito se deve, também, à total fuga do esquema maniqueísta tão utilizado nas telenovelas que os mesmos atores de Queridos amigos estão tão acostumados. O ótimo resultado final da minissérie ― com destaque, principalmente, para as boas atuações dos atores ― serve, também, como um bom exemplo do caráter limitante e reducionista da telenovela, que, aos poucos, atrofia o talento de atores e atrizes que nela estacionam suas carreiras em troca de uma possível estabilidade financeira. Sim, porque o grosso do elenco de Queridos amigos pode ser visto nas piores novelas da Rede Globo.
O destaque, entre todos, ficou por conta da atuação cheia de trejeitos e afetações de Guilherme Weber, que, na pele de Benny, cria uma espécie de Andy Warhol de humor ferino e cáustico. Rico, hedonista e sem paciência nenhuma para pieguices, o personagem não poupa nada nem ninguém. Diz tudo que pensa de uma maneira muito particular e, por isso mesmo, engraçada. É contra qualquer tipo de reaproximação com o passado e não dá a mínima para a ideologia que transformou, tempos atrás, aquele grupo de pessoas em uma turma. No fundo, Benny age como todo mundo deveria agir: sem fazer concessões à idiotice, à moralidade e à falta de educação.
Além das atuações individuais, quase todas bastante convincentes, a minissérie utiliza de forma inteligente acontecimentos reais, do Brasil e do mundo, como pano de fundo para a trama. Assim, a queda do Muro de Berlim vira drama na vida do jornalista e militante Tito (Matheus Nachtergaele), um típico marxista retrógrado.
Apesar da história se passar no fim da década de 1980, ela fala muito mais, nas entrelinhas, dos anos 1990 e do que o começo da nova década representou para os brasileiros. Isso porque, ainda que trate de assuntos tão identificados com o período oitentista, como a proliferação da Aids e a redemocratização do país, no fundo a história de Maria Adelaide não é sobre o fim de uma década, mas sobre o recomeço de trajetórias interrompidas.
E é aí que a autora encontra pontos de convergência entre seus personagens e a recente história do país que corre ao fundo da trama. É só a partir da reunião dos velhos amigos que feridas começam a cicatrizar e histórias mal resolvidas são encerradas, nem sempre com o final esperado pelo telespectador, o que é outro ponto positivo. Tudo isso sob a aurora dos anos 1990, que, aos trancos e barrancos, também representaram, para o Brasil, um recomeço. É só com as eleições diretas para presidente que o país começa a redefinir sua rota e seus objetivos, depois de um longo período de trevas. Bem como fazem os personagens de Queridos amigos depois do suicídio de Léo: Tito, o jornalista esquerdista resolve amolecer o coração e se deixa levar por um amor; Bia (Denise Fraga) ganha coragem para acertar as contas com o torturador que a estuprou na época dos anos de chumbo; e Pedro (Bruno Garcia), depois de um período de bloqueio criativo, sai do limbo para escrever a história da turma.
Mas mesmo que a política, em suas mais diversas formas, tenha grande presença na história, não há em Queridos amigos o tom pedagógico, professoral, que costuma povoar as produções que se debruçam sobre, por exemplo, a época do golpe militar brasileiro. Nessas produções (seja em livros ou filmes), parece haver uma preocupação excessiva em deixar claro para o público o quanto as pessoas que viveram os anos 1970 eram politizadas, patriotas e inteligentes.
O que não acontece em Queridos amigos. Na história de Maria Adelaide nem todo mundo é politizado ou militante (ainda que alguns personagens tenham ligação direta com a luta armada). Pelo contrário, o personagem mais politizado da trama (Tito) é visto como atrasado e tacanho. O que não quer dizer que a minissérie também não suscite certa dose de nostalgia no telespectador. É claro que sim, mas se o faz é muito mais por conta da história em si, calcada nos prazeres e vicissitudes da amizade, do que por uma suposta nostalgia pré-fabricada. Os dramas pessoais e conflitos existenciais dos personagens é que tomam conta da história. A proximidade do período retratado também funciona a favor. Afinal, os anos 1990 mal dobraram a esquina, ainda estão muito vivos na memória de todos para que virem objeto de veneração, como já acontece hoje com a horrorosa década de 1980.
Longe de apenas retratar um período ainda não digerido de nossa recente história (e dar ênfase apenas aos fatos históricos), Queridos amigos conseguiu lograr êxito em cima de um tema ― a amizade ― ao mesmo tempo emocionante e bastante propício à pieguice. Mas sua maior contribuição, certamente, foi tirar, pelo menos momentaneamente, a televisão brasileira do seu permanente estado de paralisia criativa. E isso não é pouco.
A minissérie foi um dos piores programas de 2008. Piegas e caricata retrata um grupo de amigos alienados, que citam passagens de Fernando Pessoa com se estivessem descobrindo a roda... A revolução é permanente e ininterrupta, como diz Trotsky. É fundamental vivermos a nossa revolução.