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Sexta-feira,
2/1/2009
2008, o ano de Chigurh
Vicente Escudero
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La Muerte
Em Onde os velhos não têm vez (Alfaguara, 2006, 256 págs.), de Cormac McCarthy, os personagens seguem o mesmo destino das rajadas de vento que esfriam o deserto do Texas no fim do dia: sopros de vida, cruzando audaciosamente a terra seca até o esgotamento, para morrerem num vale qualquer, sem vestígios.
O ano é 1980, o local, sudoeste do Texas, fronteira com o México. Um caçador, veterano da Guerra do Vietnã, chamado Llwelyn Moss, depara-se com o resultado de uma transação entre narcotraficantes mexicanos malsucedida: carros e corpos de cães e homens crivados de balas, abandonados no deserto. Distante dali, um corpo jazendo sob uma árvore guarda o destino dos envolvidos na história: uma mala com dois milhões de dólares que desencadeará uma caçada sanguinária envolvendo Llwelyn, a polícia, traficantes e um assassino psicopata.
A narrativa é conduzida por Ed Tom Bell, xerife do Condado de Terrell, desolado com a escalada da violência na região da fronteira entre Estados Unidos e México. Veterano da Segunda Guerra Mundial, que abandonou os parceiros durante uma batalha e ainda assim fora condecorado, é incapaz de enfrentar o recrudescimento dos criminosos, cada vez mais violentos.
A caçada flui sem arrependimentos, sem as vidas se cruzarem, mas colidindo. Num ambiente quase completamente masculino, o mal envolve o homem sem valores morais ou consciência como uma tempestade de areia no deserto, entrando pelas narinas, separando-se do pó nos pulmões e subindo pelo pescoço num ritmo vertiginoso até a destruição. Anton Chigurh, assassino em busca do dinheiro, age como um fantasma, incorporando terror aos espíritos dos homens que cruza, deixando a loucura escrupulosa decidir seus destinos em um insignificante cara ou coroa, matando-os da mesma forma como os frigoríficos matam bois: através um dispositivo que projeta uma barra de ferro retrátil, impulsionada pelo ar comprimido de um cilindro portátil.
McCarthy, crítico dos personagens cerebrais, das análises psicológicas profundas, já desqualificou a obra de Henry James, dizendo que seus livros não são literatura. Tal crítica é despropositada, sendo Onde os velhos não têm vez um contraponto ao estilo do escritor naturalizado inglês. Sem utilizar vírgulas, a caçada pelo dinheiro acompanha o estilo das narrativas bíblicas, descritivas, sem descanso para qualquer exame apurado dos conflitos, carregando a tensão a uma continuidade quase insuportável. Esta aridez da linguagem, apesar de funcionar como estilo, representar o desamparo dos personagens e a escassez das vidas secas no deserto, sobrecarrega a narrativa, mas não a compromete.
Ainda que algumas qualidades de sua escrita, como as ricas descrições das paisagens, estejam ausentes, o exercício literário de Onde os velhos não têm vez, último livro da Trilogia da fronteira de McCarthy, acertou em cheio a crise de valores que cerca a atual miscigenação da cultura americana, representada na transformação silenciosa, e quase psicotrópica, da área de fronteira delimitada pelo Rio Grande. E talvez tenha se equiparado ao silêncio e isolamento de seu autor: assim como seus personagens práticos, sem reflexão e aparentemente sem consciência, McCarthy segue solitário, dando entrevistas duas vezes a cada década.
A caçada vista pelos olhos dos irmãos Coen
A controvérsia acerca da qualidade literária dos livros de McCarthy não se repete nos trabalhos cinematográficos dos irmãos Coen. Desde Fargo, até o atual Queime depois de ler, a crítica vê seus trabalhos com bons olhos. Em Onde os fracos não têm vez, tradução equivocada ou corruptela do título original, retirado por McCarthy do poema "Velejando para Bizâncio", de Yeats, os irmãos não fizeram concessões para o público que torce pelos mocinhos no cinema.
Os acontecimentos são acompanhados pelas câmeras até o fim. Se a vítima, atingida por chumbinhos disparados de uma espingarda, agoniza, a cena acompanha a vida até seu final. As planícies, morros e despenhadeiros são apresentados até onde a vista alcança, pintando a desolação impenetrável do deserto. O paraíso acabado, como metáfora, surge no traficante e sua mala cheia de dinheiro, abandonado morto ao pé de uma árvore, simbolizando a tentação da mordida no fruto proibido. Uma simples garrafa de leite ou o reflexo em um televisor preenchem a consciência vazia dos personagens: é a garrafa que sua enquanto o xerife, tenso, está inerte; é o reflexo dele na televisão, distorcido, que revela a ele o caráter de Chigurh. A coisificação do ser humano, presente no livro de McCarthy, é reproduzida com perfeição, construindo a premonição do pior inimigo possível e a incapacidade dos personagens diante do destino.
Também não há música. A caminhada de Llwelyn pelo deserto, que em outros tempos seria acompanhada por uma flauta e um banjo, tem como companhia o barulho rascante das botas apertando a terra. Mortos, sem marcha fúnebre, são velados pelo zunido das moscas. Um pitbull persegue Llwelyn em uma corredeira, mas a sensação de afogamento é produzida pela barulho incessante da correnteza. A exceção é uma balada, tocada durante a agonia de Llwelyn, quando adormece em uma praça, baleado, e é acordado por mariachis entoando uma canção sobre arrependimento. Este é universo cômico dos irmãos Coen.
Pois é esse humor negro, que permeia o filme até o fim, a característica marcante da dupla e a conjunção entre o livro e o filme. Se McCarthy tirou o título de um poema de Yeats sobre o vigor do amor e dos jovens, justamente da estrofe que descreve uma paisagem romântica onde a juventude viceja, para dar nome a um livro em que um assassino, Chigurh, incorpora a morte inevitável num deserto abandonado, os irmãos Coen completaram a obra e deram à peste o rosto de totem de Javier Bardem, coberto por um penteado de coroinha.
Hoje, estima-se que o México tenha trinta por cento de suas terras cultiváveis ocupadas por plantas psicotrópicas. Em 1980, época em que o tráfico cresceu de forma descontrolada na fronteira com os EUA, não havia a narcocultura, movimento que enraizou as drogas na juventude sem perspectivas do México, uma década depois. Daí surgiu o culto a La Muerte, figura santa em forma de caveira, coberta por um manto vermelho, protetora dos chicanos que esquartejam e violentam os rivais na disputa pelo tráfico. Chigurh, na profecia de McCarthy e dos irmãos Coen, é a prece atendida daqueles ajoelhados nesse altar.
Para ir além
Vicente Escudero
São Paulo,
2/1/2009
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