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COLUNAS
Quinta-feira,
1/1/2009
Inunda meus olhos
Elisa Andrade Buzzo
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foto: Sissy Eiko
Elas, as luzes, vêm com a euforia das compras e num espetáculo de beleza recebe, democrática, todos os transeuntes, empetecados ou não, endinheirados ou não. Oferecem-se aos olhos guirlandas dando claridade aos prédios e postes, noite iluminada essa que inunda meus olhos, sem pedir licença, e me leva a contemplá-la como um rastro de Via Láctea. Tenho sede de luzes e é no final de ano que me abasteço delas, sem saber ao certo com qual serventia.
Há algumas semanas a decoração de Natal fora instalada nas principais ruas comerciais. A grande avenida teve suas árvores decoradas com luzes até onde a vista se perde. O pinheiro de adornos mais reluzentes foi montado na entrada da prefeitura. Aguardava com ansiedade acenderem-se no momento em que a escuridão dá seus primeiros sinais e, da minha janela redonda, das coisas que existem e que não existem, era embebida um halo verde e branco.
Em outra avenida há uma onda branca e volumosa acima de nós, combinada com uma chuva vermelha de luzes. Elas acendem e se apagam, dançantes. Outra árvore, solitária, imita neve caindo. Na praça a nudez dos galhos se reveste com folhas artificiais iluminadas e bolas vermelhas que mais parecem maçãs. E onde dormem os passarinhos nesta profusão luzidia? Não durmo eu nesta cidade iluminada, que me mantém acordada, pensamento aceso.
Fantasio outras ruas extemporâneas, com olhos biônicos de câmera de vigilância. Quero adornar os lugares já visitados, numa inútil tentativa de rever as possibilidades do que já foi descarrilado. Monitoro vidas paralelas a essa, porque o tempo nesta janela é o do pensamento, corre na velocidade das nuvens e nunca se reconfigura como da primeira vez.
Por que a prefeitura e os comerciantes se encarregam destas luzes todo final de ano? E o que leva alguém a decorar seu quadrado de sobrevida à maneira de estrela guia? Enfeites de luz chamam a atenção em meio às outras sacadas. Pois ali não apenas mora, antes vive alguém com suas aspirações e problemas, que compartilha com quem passa seu pedaço diminuto de mundo.
São 19h30, ainda é dia, um apartamento está com as cortinas fechadas e uma estrela pisca, pisca. Impossível fazer um programa diferente com os amigos, estão todos em busca de mais luzes. A fotógrafa sai à procura de cliques inéditos da decoração de Natal da Avenida Paulista. A casa branca do Bank Boston perdeu seus dias de glória com o Itaú Personnalité. Ainda assim, 0h e o trânsito da Avenida beira ao insuportável. Tudo bem, a grande caixa de presentes psicodélica em que foi transformado o prédio do Banco do Brasil já vale a visita. Enquanto isso, longe do novo centro, o Terminal Sacomã do Expresso Tiradentes bruxuleia.
Me contam da fonte do Ibirapuera, aspergindo germes e luzes. Digo que vou, mas já sei que não é minha praia pegar trânsito, comer pipoca e pagar a taxa do flanelinha para estacionar. Gosto das luzes solitárias e de difícil acesso, esquecidas nas ruas mais afastadas, presas nos prédios de pedra. Tirar os óculos e sentir o mundo ser englobado pelas luzes dilatadas. Ou ainda imaginar aquelas que ainda não vi e só mesmo o tempo, fechando aos poucos as pupilas, poderá revelá-las.
Revistas fazem um guia completo das melhores decorações da cidade. Passo em frente ao Shopping Iguatemi e reconheço o Papai Noel tropical gigante acompanhado de um labrador cor de mel portando óculos de sol. Dica do guia. O relógio d'água do shopping, que pena, foi recoberto por lacinhos vermelhos e uma casca verde com gosto enjoativo de pasta americana. Olhando mais de perto, alguns enfeites revelam uma preocupação ecológica. A original árvore de Natal do Colégio Santa Marcelina na verdade é feita com garrafas e copos de plástico coloridos. E as guirlandas verdes e vermelhas na Rua Vergueiro, timidamente dependuradas nos postes em meio à confusa mistura de fios, também parecem ser feitas de material reciclável.
Todo final de ano elas voltam, insistentes, tentando passar alguma mensagem. E não ficam por muito tempo. Seria curta a revelação? Lights will guide you home and ignite your bones. Fulgor nos olhos, a consciência exata das coisas pisca, pisca... Qual seria o significado destas luzes que aparecem e desaparecem rapidamente, para a qual olhamos absortamente, onde só pode haver uma beleza resplandecente?
E mais, a calma lúcida, em sua insistência sazonal, também me torna mais silenciosa, contemplativa. Então finalmente lembro de mim e das coisas que passam, se atenuam, se diluem no ambiente como se nunca um dia tivessem acontecido. Engano meu. Pois, ainda assim, é como se ficasse um resquício, um calor talvez luminoso, como os enfeites, que irradiam e cujo deslumbramento ninguém mais se lembra da explicação.
Nouvelle vague são essas luzes banhando cada um de nós, nos pintando de mil cores abstratas e irreais, como se fossem enredo ainda inacabado de novela ou filme de aventura. Histórias e lembranças apagadas que, um dia, como as luzes de Natal, voltam multicoloridas e desabam, torrenciais, sobre nossas cabeças.
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo,
1/1/2009
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