Todo artista, quando vai falar de si ou de seu trabalho, invariavelmente, se rende ao velho clichê "eu desenho desde que me entendo por gente". Para um profissional do traço, convenhamos, é uma maneira muito pobre de ilustrar a própria história. Sempre procurei fugir desse roteiro que começa e termina num lugar-comum. Claro que estamos falando de um dom que se manifestou desde cedo ― é assim com todo mundo que desenha profissionalmente. Mas recorrer ao clichê sempre deixa o interlocutor com pensamentos vagos, sem as tais imagens que falam mais do que mil palavras.
Foi através da minha mãe que herdei o gene artístico. E ela logo percebeu isso, procurando me instigar, me colocando em aulas de artes desde cedo. Gostaria muito de ter guardado desenhos que fiz nessa época, mas, infelizmente, nunca fui um guardião ferrenho da minha própria arte. O único trabalho que resistiu ao tempo foi esta pintura a guache sobre entalhe em madeira ― feita aos dez anos de idade ― que você vê acima. De qualquer forma, ela não dá a idéia exata do que estou falando. E agora precisarei bem mais do que mil palavras para que você visualize o quadro todo.
Uma das minhas recordações mais nostálgicas é quando eu, ainda guri, usava uma pedra, telha ou tijolo para desenhar no asfalto. As dimensões daquele pedaço de asfalto eram muito maiores do que qualquer cartolina. As possibilidades, enfim, poderiam ir ao infinito. Ou quase, se por ali não passassem carros. Eu via aquilo de uma maneira bem pessoal. A pedra era o giz e o asfalto, a minha lousa. Eu desenhava o contorno da minha mão, desenhava o contorno das sombras de outras pessoas, desenhava quadrinhos, personagens de desenhos animados, linhas de campos de futebol. Não havia regras para nada. O chão era o limite ― e o espaço parecia sempre insuficiente.
Quando eu ia à praia, o processo se repetia. Eu usava gravetos (ou o dedo) para desenhar na areia mais próxima ao mar. Ali não passavam carros. Ótimo. Eu tinha quilômetros de praia à minha inteira disposição. O problema é que, quando a maré subia, apagava tudo em segundos. Quando eu não gostava do desenho, tudo bem, mas quando eu gostava da "obra", ficava imaginando meios de eternizá-la. Não tinha jeito. A maré não fazia distinção alguma entre o que eu julgava belo ou feio.
No asfalto, ao menos, eu podia selecionar melhor minha exposição, pois eu usava uma tecnologia altamente avançada para "deletar" esboços e rabiscos indesejáveis: água da torneira ligada à mangueira. Isso é o mais gostoso de lembrar: de como tudo era tão básico, tão rústico. Um artista ainda em gestação, idéias malucas, uma pedra... e o chão, simplesmente. Arte em estado mais orgânico, impossível. Hoje, quando me vejo escravo da tecnologia, do Photoshop, da tablet, procuro me lembrar desses dias, para tentar reencontrar o básico, arejar a cabeça e buscar novas idéias. A tecnologia proporciona ferramentas fantásticas, mas não podemos fazer da arte sua refém.
Ainda me recordo que, lá pela quarta série, havia a aula de "Estudos Sociais". Dona Sueli era uma professora muito exigente. Dura, quando necessário, mas querida e respeitada. Bem, eu não tinha do que reclamar, pois uma das tarefas semanais era desenhar num caderno os temas dados em classe. A cada nova matéria dada, todos se desesperavam. "Como vou desenhar isso?", diziam os mais apocalípticos. Para mim era só festa. Já nessa época eu pegava referências de cartuns e dos quadrinhos que eu colecionava e tentava fazer do meu jeito. Seria um prenúncio para a charge? É bem possível.
Na entrega dos trabalhos, Dona Sueli era implacável com trabalhos feitos "nas coxas". Sua caneta "Pilot" vermelha era lacônica e letal: "Refazer!". Comigo ela sempre se derretia em elogios. Era a única aula onde eu desfrutava de algum prestígio, já que nas outras matérias eu não passava de um aluno mediano. Logo me tornei uma espécie de consultor dos trabalhos dos colegas. Ajudava a alguns com dicas, ajudava outros a desenhar uns detalhes, deixava que copiassem de mim... Tudo bem. Dona Sueli sabia de tudo, claro, mas se eu fizesse o trabalho inteiro para alguém, ela pegaria.
Tudo ia bem até o dia em que, inebriado pela soberba, deixei meu reinado ruir. Comecei a achar que não precisava me esforçar muito para ser "o cara". Fiquei desleixado. Nova entrega de trabalhos e, antes de começar, Dona Sueli adiantou que a classe estava de parabéns e que só houve um único "refazer". Alívio geral ― e curiosidade, para saber quem era a bola de vez. Para mim, pouco importava. Era só esperar por mais um momento de glória. E todos sendo chamados, um a um. Nada do meu nome surgir. Estranho. Será que meu dia do "refazer" havia chegado? Fui o último a ser chamado. Sim, era eu. Dona Sueli disse, perante a uma classe estarrecida, que eu podia fazer muito melhor do que aquilo e que estava muito decepcionada comigo. REFAZER, em letras garrafais. Fim da aula. Ninguém acreditava. Toda a classe correu para ver o meu trabalho. Alguns até trouxeram os seus para comparar. O meu era o melhor, segundo o consenso. Ninguém conseguia explicar o que tinha acabado de acontecer. A única explicação que encontrei ali era que Dona Sueli sempre cobraria muito mais de mim do que dos outros. Se você sabe fazer melhor, então faça melhor ― esse parecia ser o recado. Lição aprendida.
Alguns anos mais tarde, aos 13 anos, fiz um curso de artes onde eu desenhava no estúdio do professor. Em meio a uma imensa mesa posava uma mulher nua para que todos estudassem as formas, o volume, luz e sombra etc. Único moleque do curso, eu era imaturo demais para encarar alguém que estava pelado a poucos metros e fingir normalidade. Às vezes eu queria rir. Em outras, eu pensava em zombar da modelo no papel ― o que eu poderia chamar de primeiro impulso à caricatura. Por sorte, não o fiz (não era a hora). Todas as outras alunas (mulheres, em grande maioria) já eram adultas (algumas com a idade da minha mãe) e levavam aquilo a sério. Estavam lá para trabalhar, não para brincar. Se tivesse alguém da minha idade lá, nem sei o que poderia ter acontecido. Naquela época o sadismo já começava a se manifestar no meu traço. Bastaria outro garoto mal-intencionado ao meu lado para que coisas terríveis acontecessem. Por sorte, escapamos todos ilesos.
Mas foi nesse curso que descobri possuir um dom que hoje, vinte anos depois, ainda uso no trabalho. Ao final da aula, o professor sempre fazia uma espécie de "rali", onde a modelo mudava de pose a cada 30 segundos e cada um se virava como podia para desenhá-la do jeito que fosse possível. Ali descobri uma rapidez e fluência que eu nem imaginava que tinha ao desenhar. Hoje, de certa forma, lanço mão desse recurso para fazer caricaturas ao vivo.
É engraçado, hoje, lembrar de todas as influências, desde os primórdios. No começo eram os personagens do Mauricio de Sousa e do Walt Disney, onde eu até conseguia imitar bem os traços. Mas eu tentava, sempre sem sucesso, reproduzir a arte final dos desenhos. Depois vieram os quadrinhos de heróis, mas não me tornei um grande colecionador. Eu preferia imaginar enredos de ação e violência e simplesmente desenhar, sem um roteiro definido. Curioso é que eu nem me preocupava em mostrar aos outros o resultado. Era só desenhar, por gosto, sem compromissos, sem julgamentos. Na pré-adolescência, sucumbi às tentações dos desenhos pornográficos. Minha diversão era desenhar personagens famosos praticando sexo selvagem. Mais tarde, já no colegial, comecei a ensaiar as primeiras caricaturas e os alvos preferenciais eram, obviamente, os professores. Gargalhada geral. Mas eu queria ir além. Comecei a desenhar os colegas de classe. Alguns se incomodaram no início, mas depois aceitaram a brincadeira.
Porém, algo se perdeu no meio do caminho. Passaram-se alguns anos em que o desenho ficou adormecido, relegado à condição de um mero adereço que eu possuía. Minha disposição em me tornar um profissional "competitivo" no "mercado de trabalho" não mais condizia com a atitude infantil de desenhar cartuns. Não por acaso, esse período é o que eu mais renego em toda a minha vida. O desenho não era um acessório que eu poderia optar por usar (ou não) naquele utópico emprego que nunca vinha. O desenho já era o "emprego". Sempre foi. Mais uma lição aprendida: não tente ser outra pessoa, seja você mesmo. Por mais que tentemos, jamais poderemos fugir de quem realmente somos.
Sempre tive ojeriza a essa obrigação de ser o melhor, de ter que competir com todo mundo para mostrar que somos os primeiros da fila. E não por que eu tenha encarnado o loser ou por que me falte autoconfiança (muito pelo contrário), mas porque sempre acreditei que a grande competição da vida de um ser humano é consigo mesmo. Vivo torcendo o nariz para desenhos antigos, raramente me dou por satisfeito com o resultado de uma charge ou caricatura. Sempre acho que eu posso fazer melhor. Procuro sempre a autosuperação, sem jamais esquecer da autocrítica. Só recentemente, Millôr Fernandes abriria os meus olhos para essa questão: "O humor é a vitória de quem não quer concorrer".
Minha mãe sempre reprovou certas atitudes minhas quando criança. A pior delas, segundo sua ótica, era a minha predileção pelo escatológico. Sempre me contorcia em risadas convulsivas com piadas de pum, arroto, cocô, meleca e tudo o que fosse contra as regras da etiqueta e da higiene. Alguns desenhos meus refletiam essa estranha devoção. Os anos se passaram e muita coisa mudou. Deixei de lado alguns hobbies bastante discutíveis ― como brigar com os meus irmãos e brincar com fogo ― mas continuei a cultivar a escatologia, que se revelaria patológica. Mas tudo o que é ruim sempre pode piorar: fiz do escatológico a minha profissão. Na charge política posso desenhar coisas muito mais nojentas do que pum, arroto, cocô ou meleca... E ainda ganho dinheiro com isso.
Diogo, me emocionei com o seu texto. Em especial por ser uma testemunha de toda esta caminhada. Me orgulha saber que, desde o parágrafo no qual você relata os desenhos escolares, estou acompanhando sua trajetória. Abraços!