Mais do que fascinar, os gênios do passado nos assombram. É um mistério para nós ― mortais que se esforçam em tarefas relativamente banais, como escrever um texto sobre genialidade ― que alguém tenha conseguido, 500 anos atrás, com todas as dificuldades para acessar o conhecimento estabelecido da época (longínquas bibliotecas; nada de Google), desenvolver uma estupenda obra nas artes, nas ciências, na engenharia. Refiro-me aqui a Leonardo da Vinci, gênio que ainda por cima era versátil, e talvez por isso tenhamos nos acostumado a reverenciá-lo como uma espécie de deus. A barba longa e encaracolada deve ajudar.
Assim como Einstein e sua onipresente careta, da Vinci tornou-se um personagem pop, do tipo que garante o sucesso de um produto de consumo, nestes tempos em que cultura se confunde com diversão. O best-sellerCódigo Da Vinci, de Dan Brown, que se refestela nos mistérios que cercam o artista, é exemplo disso. Outro dia fui surpreendida por um desenho animado na TV, que minha filha assistia: lá estava ele, o nosso gênio, apresentado como um inventor que tentava convencer os governantes sobre a inutilidade das guerras. Ela ficou surpresa quando o relacionei à Mona Lisa, vista por ela com algum deslumbramento no Louvre. "É a mesma pessoa?", estranhou. "Pois é, filha, por incrível que pareça, é", respondi.
Ou melhor, era a mesma pessoa. Temos que colocar o verbo no passado, provavelmente, quando se trata de gênios de múltiplos talentos, já que hoje nossa sociedade é tão compartimentada. Mas e quanto à genialidade especializada, mais condizente com os tempos atuais? Temos gênios contemporâneos? Supondo que tudo começa com um dom de nascença, podemos começar investigando as nossas crianças-prodígio, que às vezes aparecem em reportagens sobre superdotados, amparadas por escolas especiais e pais empresários. Seriam elas brilhantes como Mozart (que compôs uma sonata aos 4 anos), Pascal (que publicou seu teorema aos 17) ou Dante Alighieri (que escreveu seus primeiros poemas aos 8)?
Fico imaginando que o terreno, hoje, não é dos mais férteis para o florescimento de talentos excepcionais. É razoável imaginar a preocupação de pais modernos diante de uma criança com alguma vocação especial, que possivelmente a mobiliza mais do que o "normal". Daquele jeito, "esquisito" em relação às outras crianças, conseguirá o seu filho querido ser... feliz? Sim, vale lembrar que a felicidade anda cotada acima da genialidade, na nossa escala de valores. O importante é ser feliz, se divertir um bocado e ganhar dinheiro para garantir a empreitada. Verdade que o dinheiro pode iniciar a lista, para alguns, e até levar a uma decisão de "explorar" o tal dom, ainda com o objetivo final da felicidade.
Por outro lado, uma criança genial logo perceberá os talentos que se espera de fato dela, coisas como "inteligência emocional", capacidade de lidar com o "pensamento médio" e se ajustar ao "grupo". Se conseguirem se adaptar a essas exigências básicas ― e não forem fisgados por cursinhos pré-vestibular interessados em seus prováveis primeiros lugares na prova ―, esses garotos e garotas poderão até ter momentos brilhantes no futuro. Mas dificilmente chegarão perto dos gênios do passado, que viveram sem a imposição da tal felicidade pessoal. "Bastava" ser gênio ― ainda que incompreendido ou esquisito.
De qualquer forma, é óbvio que a genialidade incontestável precisa de um (bom) tempo para ser avaliada com distanciamento, até que nos certifiquemos da perenidade de uma obra ou da dimensão de uma descoberta para a humanidade. Ou seja, os gênios precisam virar fantasmas, para, aí sim, nos assombrar de fato. Quem não ficou impressionado, no ano passado, ao reler Machado de Assis? Não tenho dúvida de que o impacto ganhou força, com o passar dos anos, mesmo para os admiradores mais antigos do escritor. Um prêmio Nobel deste ano dificilmente será unanimidade, mas nada impede que ganhe o reconhecimento de gênio no próximo século. Um esportista recordista de títulos, "candidato" a gênio, a qualquer momento pode ser ofuscado por outro, este sim, que marcará a história. E por aí vai.
Entre a genialidade, reconhecida na posteridade, e o talento que arrasta admiradores contemporâneos, o que existe é a controvérsia. Woody Allen é um gênio do cinema? Teria Bill Gates perdido o posto de gênio? Quem foi mais genial: Pelé ou Maradona? A genialidade de Niemeyer já é reconhecida internacionalmente? E a de Villa-Lobos?
Pelo visto, a polêmica descamba para a questão de "gosto não se discute". Mas se é para falar de gosto pessoal, vou contar sobre o tipo de talento (gênio?) da atualidade que costuma me reservar pequenas doses de encantamento e assombro. Em geral, o impulso de gritar "esse cara é um gênio" me vem junto com a certeza da originalidade. Associar pensamentos e conhecimentos que estão por aí, fazê-lo bem feito, avançar um pouco mais, tudo isso é parte de um admirável mundo conectado e global, pulsante e interessante, suficiente para eu planejar morrer bem velhinha e ter tempo de ver os novos filmes e livros que ainda serão escritos. Mas nada disso se compara ao frescor da originalidade. Quando penso que ainda vou esbarrar em muitas artes assim, brotando da terra, dá vontade mesmo é de ser imortal, ou arrastar corrente por aí. Como os gênios do passado.
Marta, isto é forte: "a felicidade anda cotada acima da genialidade, na nossa escala de valores..." Marta, o seu texto e, em especial, a frase sublinhada remetem-me ao pensamento de Walter Benjamin, sobretudo quando o filósofo alemão afirma a nossa pobreza de experiência: "eles [os modernos] 'devoraram' tudo, a 'cultura' e os 'homens', e ficaram saciados e exaustos. 'Vocês estão todos cansados - tudo porque não concentraram todos os seus pensamentos num plano totalmente simples e absolutamente grandioso'" (isto retraduz o último parágrafo do seu texto, Marta! A originalidade exige EXPERIÊNCIA, isto é, SABEDORIA, consoante Benjamin). Abraços do Sílvio Medeiros.