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Crise
Segunda-feira,
16/3/2009
Pobre, porém limpinho
Pilar Fazito
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O cinema em época de crise
Assim que a crise norte-americana foi divulgada, no segundo semestre de 2008, falei com uma amiga atriz, que vive em Nova York há muitos anos. Ela praticamente cresceu lá, então é compreensível que partilhe um bocado da identidade daquele povo. Minha amiga não parava de falar do lado de lá do Skype e eu, do lado de cá, imaginava que, finalmente, os extraterrestres haviam pousado no teto da Casa Branca e faziam o presidente Bush de refém. Parecia que o próximo passo seria dominar a rede de televisão e explicitar suas ameaças ao resto do mundo. Os ETs, provavelmente, estariam sugando os cofres públicos com dragas enormes e estariam preparando a ativação de "ovos" de criaturas adormecidas, deixados na Terra há muito tempo para que agora, finalmente, saíssem das profundezas do magma, a fim de matarem os seres humanos e dominarem o planeta.
Minha amiga é atriz, mas não é desmiolada. Não tanto. Ela apenas achava, como toda a população norte-americana, que a economia ocidental estava acabando, os Estados Unidos estavam desmoronando e, por consequência, havia chegado o apocalipse. Eu tentava acalmá-la, dizendo que o pior que poderia acontecer era voltarmos ao sistema de trocas, à monocultura e à sociedade tribal nômade. Tentava dizer que a crise não ia afetar em nada os bosquímanos na África, nem o matuto que planta tomate em seu quintal, no interior de Minas Gerais.
Mas não adiantou muito. Como disse, minha amiga é atriz e vive em Nova York, único lugar em que a indústria do cinema se desenvolveu plenamente ao longo dos anos como um ramo econômico rentável e poderoso, capaz de influenciar a história da humanidade, além de empregar milhares de pessoas ― desde costureiras e cabelereiros a eletricistas, arquitetos, administradores etc.
Passado o desespero inicial, os norte-americanos começam a aprender a lidar com a moderação e a mudar seus hábitos consumistas que, convenhamos, sempre estiveram em um patamar astronômico e escandaloso, em relação a muitos países ― e não me refiro a países do terceiro mundo. Eles também estão vendo que a pobreza não é uma escolha e que, por pior que seja, não é o fim do mundo.
Depois de todos esses meses, minha amiga já está mais calma. Em todo caso, vem tentar a sorte no Brasil, veja só. É que as produções cinematográficas e audiovisuais nos Estados Unidos foram as primeiras a sofrerem com os cortes orçamentários. Algo bastante previsível, já que, nessas horas, cultura e entretenimento viram "superfluosidades", como diria o Manolito, personagem das tiras da Mafalda.
Nesse sentido, a premiação do Oscar deste ano diz muito. Com um orçamento de 15 milhões de dólares, Quem quer ser milionário? foi o grande vencedor da noite, desbancando O curioso caso de Benjamin Button, que consumiu nada menos do que 150 milhões de dólares em sua produção. Mais do que promover uma discussão em torno da qualidade cinematográfica atual, isso sinaliza uma nova tendência em tempos de crise financeira e manda dois recados: o primeiro deles é que, neste momento, o dinheiro indiano é muito bem-vindo nos Estados Unidos; o segundo é que as produções norte-americanas têm que baixar um pouco a bola, afinal, uma produção cara não é condição necessária para que uma boa história seja contada ― dentre outras medidas a serem tomadas, as estrelas de cinema têm que sair do céu, pôr o pé na calçada da fama e baixar um pouco o valor de seus cachês milionários.
Desde a cerimônia de entrega do prêmio, a Índia vive uma espécie de feriado nacional ou de carnaval brasileiro. Acho que no dia em que um filme nosso abocanhar uma mísera estatuetinha daquelas, faremos o mesmo alvoroço, não só porque isso implicaria o reconhecimento de um produto nacional, mas porque alavancaria a profissão de quem ganhasse.
Aí, os brasileiros começam a sonhar: se os indianos ganharam o Oscar com 15 milhões, falando sobre um favelado, nós podemos ser os próximos. Bem, favelado é o que não falta no nosso país. Já os 15 milhões para fazer filme... Se o Brasil chegar a ganhar um Oscar, a comemoração deverá ser ainda mais emocionada, já que nossos filmes, quando muito, conseguem ser feitos com 5 milhões. De reais. Na verdade, boa parte da nossa produção não passa de 3 milhões de reais. Falo daquelas produções chamadas "independentes" que têm que pedir permissão à ANCINE e, em seguida passar o chapéu, batendo à porta de tudo quanto é empresa e esmolando um pouquinho de contribuição para o lanche do ator principal.
Como disse, uma produção cara não garante que um filme conte uma boa história. Mas um orçamento risível como o nosso dá menos garantia ainda.
Neste exato momento, determinado filme brasileiro, cujas filmagens se deram no sertão da Bahia, está sendo finalizado. Ouvi boatos de que seu orçamento gira em torno dos 20 milhões de reais, o que é uma fortuna para os padrões nacionais. Isso permitiu não apenas a contratação de um grande preparador de lutas marciais, conhecido mundialmente, como também assegurou a utilização de bons equipamentos, remuneração adequada para toda a equipe, contratação de uma direção de arte e de fotografia de tirar o chapéu e por aí vai.
O problema é que, meses depois, a cidadezinha usada como locação recebeu a equipe de produção de um outro longa metragem brasileiro. O orçamento, desta vez, é bem mais modesto e não chega a 3 milhões de reais. Preciso dizer que a tarefa mais árdua tem sido fazer a população local entender por que, desta vez, não se pode pagar valores maiores para a figuração, aluguel de casas, diárias de pousadas, pagamento de refeições etc?
Enquanto o Oscar faz os norte-americanos entenderem que devem reduzir os custos em tempo de crise, o cinema brasileiro vive uma crise permanente, independentemente de como anda a economia do nosso país. É que, infelizmente, essa condição se deve menos à falta de dinheiro no Brasil do que à falta de visão de políticos, empresários e administradores, que não percebem os benefícios de uma produção cinematográfica para a sociedade. Além de gerar muitas vagas de trabalho temporário, mobilizar a economia local e promover o turismo, os filmes divulgam a identidade e os valores de um povo, atraem público em festivais e mostras e têm potencial para ser usados no setor da educação.
Aí, você me diz que o cinema nacional é ruim. E que, exceto por Se eu fosse você e 2 Filhos de Francisco, os filmes brasileiros não dão bilheteria. Vamos por partes, como já disse Jack, o estripador...
O cinema no Brasil tem sua origem nos cinejornais e nas radionovelas. Por um tempo, espelhou-se nos musicais de Hollywood, mas o que fez sucesso por aqui mesmo foram as chanchadas, as pornochanchadas e as produções que não guardam muita diferença daquelas que são feitas para TV. Não menciono os filmes do Cinema Novo, do Udigrudi e outros movimentos "alternativos". O que sempre atraiu o público aqui foram as comédias escrachadas, cujo enredo não traz complexidade e que costumam ser esquecidos assim que o sujeito deixa a sala de cinema. Então, a gente questiona se a qualidade dos filmes é ruim porque o povo só quer ver filme ruim ou se o público vê filme ruim porque não há nada melhor para se ver. Não sou eu quem vai responder a essa pergunta jurássica. Só o que posso dizer é que ela resume os dois principais problemas do cinema brasileiro: a distribuição e o roteiro.
A distribuição é um tema já batido nos círculos cinematográficos. Todo mundo sabe que é muito cruel disputar com as superproduções norte-americanas de 150 milhões de dólares. Do mesmo modo, é difícil disputar com um filme feito e distribuído por uma grande distribuidora. São justamente esses filmes os que têm mais grana para torrar com sua divulgação. Consequentemente, eles atraem mais o público e permanecem por mais tempo em cartaz.
Já o roteiro é um tema tabu. Dizer que não temos bons roteiros é pedir para levar uma pedrada nos festivais de cinema do país. Mas a verdade é que, no geral, não temos mesmo bons roteiros. Isso se deve à falta de formação e de reconhecimento da profissão no Brasil. Mal temos cursos de graduação em Cinema, que dirá uma formação superior e especializada em roteiro. O resultado disso é que nossos filmes são escritos por profissionais de áreas afins, oriundos, sobretudo, da TV e da literatura. Só que televisão e literatura não são cinema e, na maioria das vezes, o texto que se apresenta para uma equipe de filmagens não foi trabalhado à exaustão, como deveria, e está cru, mesmo que a intenção seja boa.
As técnicas empregadas na construção de uma história são determinadas, em parte, pelo suporte midiático e orçamento (ou por restrições orçamentárias). Existem ainda outras condições que determinam a duração da narrativa e o modo como esse tempo e o tema serão distribuídos na tela.
Além disso, cinema é uma atividade muito cara ― mesmo para a nossa média de 3 milhões de reais ― e, por isso, nenhuma frase de um roteiro pode ser gratuita. Isso faz com que sua escrita seja um trabalho demorado e minucioso, ao contrário de roteiros de tv, que lidam com o imediatismo.
Como se não bastasse o imediatismo, os índices do Ibope também interferem nas histórias contadas na tv. Por isso, não é raro que o público perceba quando a trama se arrasta numa embromação sem fim ou, ao contrário, muda do dia para a noite, com a inserção ou a morte abrupta de personagens, acontecimentos radicais e um deus ex machina no final, ingrediente que salva todo mundo de uma única vez.
Quanto à literatura, a diferença é ainda maior. Só o fato de não podermos usar o tempo passado, o futuro, adjetivos, períodos longos e fluxo de consciência nas ações e rubricas de um roteiro cinematográfico já mostra o quanto o cinema é mais pobre, em termos verbais.
Escrever e publicar um livro também é algo bastante pessoal; as decisões concernem basicamente ao escritor e ele faz o que lhe der na telha. Já o roteirista de um filme é a primeira engrenagem de um sistema muito maior, e a história que inventa só se torna uma obra de verdade depois de passar por uma infinidade de gente que acredita naquilo que ele escreveu e que dará a sua contribuição profissional. O trabalho, como se vê, é coletivo, por mais que a idéia inicial tenha sido sua.
As diferenças entre tv, cinema e literatura são enormes e merecem uma crônica própria. Eu mesma tive dificuldades em aceitar que elas existem e que, de fato, precisamos investir na formação de roteiristas no Brasil. Essa é, sem dúvida, a forma mais barata de se investir no cinema nacional. Precisamos aprender a explorar todas as formas possíveis de narrativas visuais e absorver o máximo de técnicas de escrita de roteiros ― até mesmo para poder subvertê-las e recriá-las ao nosso modo.
Só com muita criatividade e conhecimento técnico poderemos fazer com que nossos 3 milhões de reais médios sejam capazes de concorrer com produções estrangeiras caras, em que uma única cena de um submarino atacando um rebocador, por exemplo, custa mais do que um longa-metragem brasileiro.
E os norte-americanos é que dizem que estão em crise...
Pilar Fazito
Belo Horizonte,
16/3/2009
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