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Quinta-feira, 9/4/2009
Odiou-se minuciosamente
Vicente Escudero
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"O Sul", conto de Jorge Luis Borges, trata do duplo, projeção autônoma da personalidade, dividindo o protagonista em dois pólos contrastantes: a vida de um pacato bibliotecário, que durante o agonizante tratamento de uma doença em um sanatório desdobra-se no irreal, nos delírios do protagonista sonhando a própria morte em um duelo de facas num ambiente idealizado, numa representação do gauchismo permeada de um "sentimento profundamente argentino".

O enredo é autobiográfico. Borges, no prólogo da edição de Artifícios, coletânea de contos lançada em 1944, avisa ao leitor que a história pode ser lida superficialmente, como uma narração direta de fatos novelescos ou numa segunda camada, secreta, em que os acontecimentos na vida do protagonista tornam-se fantásticos e revelam a fuga do tratamento degradante pela representação da morte, dignificada no enfrentamento do perigo. Nas duas leituras, a vida de João Dahlmann é permeada por fatos ocorridos na vida de Borges. O protagonista também é bibliotecário. A septicemia causada pelo choque com o batente de uma janela, que na vida real do autor custou-lhe uma cirurgia, tratamento penoso e dez dias de repouso, na história desencadeia a doença do protagonista e seu isolamento no sanatório durante a terapia.

Interpretada como uma novela realista, seu deslinde passa pela cura do protagonista e acaba no duelo com um dos gaúchos presentes na venda; uma homenagem simples ao homem das planícies e seu caráter firme, resoluto. Compreendida nas entrelinhas, com as referências feitas pelo próprio autor, no prólogo, a Bernard Shaw, De Quincey, Stevenson, Mauthner, Chesterton, Léon Bloy e Schopenhauer, a transformação de João Dahlmann não é cura, mas loucura. Ao ser internado na clínica da Rua Equador, metáfora do espaço limítrofe, o protagonista passa a habitar a zona gris entre a sanidade e a loucura, no mesmo exercício do duplo presente em O Médico e o Monstro, de Stevenson. Lutando meticulosamente para suportar a dor, Dahlmann entra em um estado de delírio no qual as lembranças e as expectativas para o futuro fundem-se numa projeção negativa da situação real e criam uma saída honrosa contra a realidade abjeta da falta de sono, a presença ininterrupta, incansável, da realidade. Dahlmann divide-se e o crioulismo, seu sentimento de nativo do Sul, argentino e gauchesco, em contraposição ao urbano do Norte, começa a comandar as ações enquanto o outro enfraquece.

Durante o início do tratamento, enfraquecido pela dor, o protagonista odiou-se minuciosamente; odiou sua identidade, suas necessidades corporais, sua humilhação, a barba que lhe eriçava o rosto. E é neste exercício de negação de suas condições que Dahlmann dá espaço para o surgimento do outro. Esta é a chave do enredo, seu turning point: o momento em que ele dá vazão a sua força vital (Shaw) e supera o medo.

A partir desse domínio pelo outro, Dahlmann alivia a dor através da arte, da representação de uma breve trama épica em que seu destino é irreversível: lutar uma batalha heróica, sacrificar-se. Aqui, a influência do pensamento de Schopenhauer surge com a supressão da dor, proveniente da vontade de curar-se, através da contemplação da história de sua morte em circunstâncias mais dignas que no sanatório.

Nesse labirinto de referências, não espanta que Borges tenha omitido a presença de Ambrose Bierce. O exercício de relativização do tempo dos fatos, a extensão de um instante na consciência a partir de uma experiência limítrofe, foi tratado por este autor no conto "Incidente na ponte de Owl Creek", em que o americano Peyton Farquhar, sulista tradicional e entusiasta dos confederados, acaba sendo enforcado durante a Guerra de Secessão, após ser enganado por um agente disfarçado do exército da União e tentar destruir uma ponte utilizada pelo exército do Norte. A ação começa já no instante do enforcamento e desenrola-se com a fuga do protagonista a partir do rompimento da corda e sua queda no rio sob a ponte, título do conto. A fuga ocorre em meio a uma chuva de tiros, enquanto Peyton tenta se esconder sob a água, nadar para a borda e fugir através da floresta. O êxito da fuga termina na porta de sua casa, onde ele corre para os braços da esposa. A narrativa, então, é interrompida bruscamente; ele sente uma pancada na nuca, um brilho branco ofusca-lhe a visão e a descrição de seu corpo morto, movendo-se como um pêndulo sob as vigas da ponte, surge encerrando o instante fantástico. Os segundos que precedem o enforcamento do protagonista transformam-se em um delírio de minutos, causado pelo terror da morte iminente.

No conto de Borges, a técnica é a mesma. A partir da tomada do controle pelo outro, a estadia do protagonista no sanatório é interrompida pela breve trama épica. Borges dá indícios da duplicidade, como a semelhança do funcionário da venda com o do sanatório, a ausência de detalhes específicos na viagem, que é cercada por lembranças genéricas ― como um borrão da memória do personagem. A clara indiferença do protagonista aos detalhes da viagem, sua incapacidade em questionar a estranha parada do trem antes da estação final, demonstram a irreversibilidade dos fatos, sua falta de controle sobre o destino, como num sonho. Esta jornada ao âmago tem início na internação e se encerra nela, quando Dahlmann, no final, imagina que a morte no duelo seria uma libertação para ele, na primeira noite na clínica, quando lhe cravaram a agulha. Borges é mais sutil que Bierce: o final de sua história é aberto, a morte do protagonista não é apresentada e todos os elementos que indicariam o duplo são apenas indícios, tornando qualquer interpretação, transitória.

Qual a importância de "O Sul"? Para Borges, este talvez tenha sido seu melhor conto, opinião compartilhada por Harold Bloom. Sua estrutura é aberta, comporta as mais diversas interpretações (o leitor pode constatar isso através de uma simples busca no Google), além de identificar as características mais importantes da literatura do autor, como a presença constante de reflexões filosóficas, a construção minuciosa de camadas e subtextos, tudo revelando um gênio preocupado com o tratamento universal dos temas e a necessidade da criatividade suplantar as frivolidades realistas.

É no mínimo estranho constatar que um autor deste porte, como Machado de Assis, tenha sido acusado de trair sua cultura, sua pátria, por supostamente fugir das tradições locais. Seu melhor conto é autobiográfico e representa o gaúcho tradicional da Argentina, numa perspectiva digna, coberta de heroísmo, afinal, mesmo não sabendo manejar uma adaga, Dahlmann não desiste do duelo.

Uma história com tantas qualidades deixa viva a seguinte indagação: É possível uma nação renegar a nacionalidade a um homem que representou a própria morte numa peleja, como um dos seus?


Vicente Escudero
São Paulo, 9/4/2009

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