COLUNAS
Segunda-feira,
8/6/2009
Guia Jetlag de Viagem: Molvânia
Ricardo de Mattos
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"Wakuz Dro Brugka Spazibo!"
("Que Deus lhe dê um burro robusto", voto molvão de boa sorte).
Os guias de viagem Jetlag constituem uma interessante série dedicada a destinos pouco explorados do globo. Fez-se um levantamento em todos os mares e continentes, dos lugares em geral ignorados, apesar de pitorescos e atraentes, pelas seções de viagem dos jornais e pelas agências na elaboração de seus roteiros. Os guias, portanto, apresentam países e regiões que garantem o inesperado nas viagens de férias, como San Sombrero, na América Central; Mustachistão, no Oriente Médio; Bongoswana, na África; ou o Estreito de Syphollos, no Mediterrâneo. Escolhemos na coleção o volume dedicado à Molvânia, país incrustado no Leste Europeu. É o mais recente candidato à integração na União Européia, conforme noticiado pelo seu único canal transmitido no Brasil ― o de número 463 para quem for assinante da Sky. Rob Sitch, Tom Gleisner e Santo Celauro assumem a autoria deste trabalho traduzido por André Conti e Vanessa Barbara. Além do guia, Vanessa Barbara traduziu recentemente Três vidas, de Gertrude Stein, assina coluna quinzenal no caderno Cidades do jornal O Estado de São Paulo, é autora d'O livro amarelo do terminal e coautora d'O verão do Chibo.
Molvânia não deve ser confundida com Moldava, outra república também do leste europeu, mas portadora de duas crises. A primeira, de identidade, pois constantemente muda a ortografia de seu nome, revelando o desacordo das numerólogas consultadas. A segunda, de relacionamento, pois ora decide-se pela união com a Romênia, ora decide-se por dar um tempo, conhecer pessoas... respirar, enfim, à semelhança de um casal nosso conhecido. Na primeira, o idioma utilizado é o molvanês, derivado do siríaco e do dalmático, composto principalmente por verbos irregulares e pelo número recorde de letras mudas. A igreja dominante é a báltica ortodoxa, sendo o patrono São Fiódor (1507-1563), cujo martírio consistia em três angustiantes horas diárias de jejum e abstinência alcoólica. Composta por três etnias básicas ― bulgos, hungos e molvos ―, a Molvânia é dividida em quatro regiões geográficas bem definidas: a dos Alpes Molvãos, a das Estepes Orientais, a do Grande Vale Central e a do Planalto Ocidental. A capital nacional é a cidade de Lutenblag.
Os Alpes Molvãos foram abertos ao turismo logo após o cessar fogo com a Romênia. É a região das Grandes Planícies, cortada pelo rio Fiztula e cujo perímetro define-se no extremo leste pela Cordilheira Postenwaly. Foi visitada pelos romanos, que a qualificaram plana monotona desolata, qualificativo retomado milênios depois pela Unesco ao declarar o lugar como Patrimônio da Humanidade pela "significativa monotonia". Duas cidades destacam-se: Vajana e Svetrany. Esta formou-se no século XVI como importante posto mercantil e foi reconstruída passados duzentos anos, quando retomada dos turcos. É reconhecida pelo artesanato ― renda de juta ― e pela culinária típica na qual predominam, juntos, o repolho, a batata, a salsicha, nata e vísceras. O prato mais procurado do cantão é a guzpa sopa rala com páprica e banha de ganso.
As Estepes Orientais talvez sejam o lugar mais refratário ao turismo. Os moradores podem ser flagrados defendendo a planitude da Terra em discussões tensas e ignoram a abordagem por pessoas trajando roupas curtas ou que tenham demonstrado afeto em público. Os ritmos populares, únicos na história da música, caracterizam-se por sobrepor o volume à melodia, o que nos faz suspeitar da presença de imigrantes molvãos em várias partes do Brasil. Não obstante, os ventos gelados do Nordeste garantem um charmoso clima de aridez perpétua, permitindo às pessoas desfilarem nos seus elegantes trajes fabricados com estofamento reciclado de automóveis. Não é o cardápio que atrairá as pessoas visto limitar-se ao porco assado acompanhado de linhaça, a testículos de burro e ao queijo muczed, forte o suficiente para levar mulheres ao trabalho de parto, estejam ou não grávidas. Desenvolveram-se nas Estepes três principais cidades: Bardjov (pronuncia-se "Bardi-ce-zjoff"), Lublova e Dzrebo. Os molvãos acreditam que Shakespeare referia-se à primeira quando mencionou, num de seus sonetos, certo "antro amaldiçoado do tifo/ onde só há miséria e dor". A segunda cidade é campeã nacional no combate à poluição do ar, proibindo que fornalhas de carvão e geradores a diesel funcionem entre meia-noite e seis da manhã. Uma nota sobre a raça canina nativa, o mastim molvão, lançou novas luzes quanto à origem de nossa cachorra Bahiana, que julgávamos um exemplar perdido de cão de rinha do Cazaquistão.
A origem de toda Molvânia encontra-se no Grande Vale Central, caracterizado por suas amplas planícies de calcário. Duas são as cidades principais: Gyrorik e Jzerbo. Gyrorik é a que possui maior diversidade cultural, com poloneses, húngaros, eslovacos, estônios e ucranianos cumprindo pena no Centro de Detenção. A outra cidade, Jzerbo, é assinalada pelo grande número de conjuntos habitacionais datados da era soviética. É centro urbano de hábitos peculiares. O esporte tradicional é a caça à raposa, nos moldes ingleses e com igual oposição das organizações de defesa dos animais, empenhadas em afastar a prática ao menos das escolas. A tortura processual foi abolida em 1801, vigorando até quarenta anos atrás apenas como distração popular. O trânsito deixa a desejar, suspeitando as autoridades que nove anos não seja idade adequada para a habilitação legal. O investimento cultural também decaiu, de forma que os músicos da orquestra sinfônica precisaram aprender a conciliar o playback de alguns naipes ― como o de cordas ― com execuções ao vivo ― como a da percussão.
Encerrando a breve vista d'olhos sobre tão bravo quão inusitado país, resta falar sobre o Planalto Ocidental, onde localiza-se a maior reserva pantaneira do mundo, com cerca de dois mil quilômetros quadrados de lodo. Apesar da copiosa flora e fauna, a afluência turística é pequena. É também onde situa-se o lago artificial Vjaza, nascido em decorrência dum acidente nuclear soviético. Nas suas bucólicas margens, há o restaurante Lippa Daz, onde os clientes "podem escolher qualquer das criaturas mortas trazidas pela maré durante o dia". Na culinária regional, predomina o uso de picles e repara-se na presença histórica do bolo glebzeci, recheado com queijo de cabra, nozes, chantili, chocolate, manteiga, gergelim e ovos. As cidades mais importantes do Planalto são Sjrezo e Sasava. Outrora violenta, Sjerezo é agora sede da Euro-Leste Disney, e nela pode ser visitado o túmulo do insigne compositor Vicktor Chezpak, ainda vivo, para quem a população local sentiu certa ânsia em prestar a homenagem. No tocante ao passado rural do outro município, Sasava, restam-lhe apenas o abatedouro de cavalos e a fábrica de sebo. Não obstante o dialeto local seja um obstáculo até para os fluentes em molvanês, deve ser reservada uma semana para visitá-lo devido a sua importância histórica e política. Ali viveu Sterna Busjbusj, mãe do grande ditador Szlonko Busjbusj, cujo nome é presente nas praças e avenidas principais de todas cidades molvãs. Sasava abrigou o governo central durante certo período, na ocasião em que o presidente foi intimado a ficar mais tempo perto de sua mãe.
A leitura do guia Jetlag, com suas várias emendas e observações que aumentam a segurança de quem o consulta, despertou-nos a ideia de escrever aos editores sugerindo um próximo destino. Na cidade de Sjerezo citada acima, informou-se que o forte do comércio são os DVDs piratas, o que a torna cidade irmã de nossa Taubaté natal. Tanto que as autoridades municipais reservaram um local específico para isso, o glorioso "Shopping Alternativo Campos Sales". Obedecendo ao Código de Defesa do Consumidor, os DVDs têm garantia e prazo de troca. Além do vigoroso mercado, outros pontos folclóricos podem ser visitados, como as rotatórias dotadas de lombadas e os postes de luz no meio dos trechos de calçamento especial para deficientes visuais. O que atrapalha um pouco é o trânsito, pois por convenção local usa-se parar no sinal verde e avançar no vermelho. A cultura encontra valiosa guardiã na primeira-dama, que todo ano faz questão de montar um presépio com as figuras de "Maria, Jesus e o neném".
Nota do Autor
Recomendamos este clipe de Zlad, grande nome da música contemporânea molvã, interpretando "Elektronik Supersonik".
Para ir além
Ricardo de Mattos
Taubaté,
8/6/2009
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