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Como se escreve
Quarta-feira,
17/6/2009
Sobre escrever a História
Guilherme Pontes Coelho
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Então você tem uma história para escrever. Seja pela criação, seja pela recriação, você precisa passar adiante uma história. Precisa porque precisa, e ponto. Há valor na narrativa que você quer passar adiante e é muito chato explicar qual é ― contá-la é o que deve ser feito. Você crê que a história fará sentido a seu leitor ou interlocutor. Mesmo que não faça sentido, você precisa narrá-la.
Houve um tempo que este mundo era um mistério. Um lugar de monstros, sereias, ciclopes, gigantes, deuses e demônios... Os animais falavam, o homem andava nu, anjos viviam na terra. Esta imagem perdurou por muito tempo. Imagine você, ainda podíamos sentir o efeito deste mundo fantástico num gênio como Kant, que, dando aulas de geografia em Königsberg, maravilhava os alunos quando falava de gorilas de três metros de altura... em plena Amazônia. (A maior distância que Kant viajou na vida foram oitenta quilômetros.)
Hoje, porém, não é assim que a coisa funciona. O encantamento já era. As sereias são mutiladas, os ciclopes têm dois olhos, os deuses morreram. Talvez os demônios ainda vivam, em nós, mas isso é só um juízo puritano de minha parte. Os demônios, como John Milton os criou, morreram.
Só que esse desencantamento é recente. Com tanto tempo de História, parece que foi só no século XX que criamos a consciência da folha de parreira. A virada do século XIX para o XX foi especial. Naquele momento, a humanidade saía da casa dos pais. O fin-de-siécle era o fim da adolescência, a Belle Époque, a festa de comemoração ― na manhã seguinte, o peso inexorável da realidade.
Em toda parte, a realidade mostrava sua cara. Com Freud, falando que você tem tesão pela sua mãe ― e que isso é normal, ora bolas; com Weber, falando metódica e cristalinamente que ninguém está aqui de brincadeira, que nada é de graça e que o encanto já era, mesmo; com Lênin, dizendo o mesmo que Weber só que para outra direção, porque inspirado em Marx, e com muito sangue. A lista continua, você conhece a coisa toda.
Em meio a isso tudo, havia ainda espaço para o romantismo. Romantismo agonizante, claro. Uso mais uma vez a metáfora da festa: era a última dose de Wiborowa. Este texto será sobre ela, sobre como contei esta história a mim mesmo, algumas vezes, e sobre como conto a você, agora.
O ultimo lugar da Terra
Primeira década do século XX. Os países sentiam intensamente o peso do presente e a morte do passado. Dois interessam a nós. Grã-Bretanha e Noruega. O maior império da História, caído; um país perdido no Norte lutava pela maioridade. As linhas tortas da história superam qualquer composição de literatos geniais. Porque neste contexto, dois personagens, um de cada país, entrariam em cena. Eles não podiam ser mais perfeitos um ao outro.
Sobre como apresentá-los, nunca tive certeza, em nenhuma das oito versões anteriores desta coluna. São tão opostos e tão literariamente complementares que eu queria que houvesse ao menos uma noção de equilíbrio cênico entre eles. Eu havia lido quatro livros para escrever isso, dois dos quais escritos pelos próprios personagens. Embora no início eu tenha sentido mais simpatia por um que por outro, ter a consciência disso me aborrecia. O equilíbrio almejado esbarrava na minha preferência. A linearidade do texto não ajudava, obviamente, porque quem representasse a antítese do meu silogismo narrativo ganharia mais créditos. Só agora é que achei um critério que me parece justo. A intenção de cada um deles.
Robert Falcon Scott, um capitão da Marinha Real, quis ser o pioneiro a chegar no último lugar da Terra, o Pólo Sul Geográfico. Ele teve a ideia primeiro e a havia expressado em público. Roald Amundsen, um explorador norueguês, chegou lá ― e de lá voltou, com vida.
Como parte do ritual, para escrever uso o notebook na mesa da sala ― o escritório é meio sufocante. Na sala, de vista panorâmica, fico em silêncio. As crianças brincando na quadra de tênis são o único som mais pronunciado. Não é difícil se concentrar aqui. Não tomo café ou estimulantes, água vai bem na hora de escrever. (Quando fui fumante, meu ritual era o mais clichê possível: litros de café e quilos de Marlboro Red.) É indispensável estar bem calçado. Vez ou outra ponho Cartola ou Miles Davis pra ouvir, qualquer coisa que seja simples e sofisticada e, por isso, oposta à confusão da minha mente na hora de definir como operar trama e urdidura. No caso da história Amundsen-Scott, tentei outros remédios, como escrever em pé, escrever ao som de death metal, manuscrever e outros.
Ao som do folkmetal norueguês, falemos da Noruega e seu povo.
Aquele país tornou-se o paraíso na terra há pouco tempo, historicamente falando. Quando a capital ainda era Christiania, a Noruega vivia sob o domínio da Coroa sueca, não era um país soberano. Os feitos de Fridtjof Nansen colocaram em marcha o processo de independência.
Os noruegueses vivem num pedaço de terra hostil. Um país extremamente frio, montanhanoso, nevado e com um grande mar gélido à sua frente. Seis meses ao sol, o que não implica em calor, outros seis à luz da lua. A natureza não os poupou. Mas eles sobreviveram, adaptaram-se. Ser norueguês ajudaria Amundsen imensamente em sua jornada, porque todo norueguês sabe esquiar e navegar. São habilidades inatas.
Há muito tempo aqueles escandinavos aprenderam que ir contra a natureza é burrice ― o homem nunca ganhará. Ir com a natureza, por outro lado, é simbiótico. Esta é uma lição que aquele povo aprendeu antes de todos. Eles já tinham o domínio do território natural, precisavam então ser soberanos. "Este é o nosso lugar". Heróis nacionais contribuíam com a propaganda da independência. O primeiro deles, Fridtjof Nansen, o homem que atravessou Groenlândia de esqui.
Ao ler a aventura vitoriosa de Nansen, Amundsen, ainda criança, escolhe seu destino: quero ser explorador. E vemos, circunstancialmente, o poder da narrativa em ação. O relato de Nansen hipnotiza o menino Roald, o "ultimo dos vikings", como era tratado pela família, e tudo o que ele fez desde então foi com o exclusivo fim de ser o melhor explorador da História. Destino.
Neste ponto, fico impressionado com a importância de contar uma história, sua ou de outrem. A cada dia, herdamos uma infinidade de fábulas que vivemos em conjunto; e a cada dia várias possibilidades de continuar a nossa se materializam. Querendo ou não, sempre escrevemos nossa história (Schopenhauer) e é por isso que se queixar é feio (sabedoria popular).
O que Nansen viveu inspirou Amundsen. O que Amundsen viveu me inspirou. Por isso, tento lhe narrar a mesma aventura. Ao contrário das demais versões desta coluna, esta que você lê é a última. Escrevo lentamente, um parágrafo por vez. Vários minutos de pausa entre um e outro.
Nossos personagens também tinham consciência do valor de contar a própria história, não só pelo aspecto mítico ou existencial, mas pela validação pragmática de si mesmo. Veja, Amundsen nunca quis ir ao Pólo Sul. Aos noruegueses o Norte é mais importante, é a casa deles. Porém, outros chegaram lá primeiro, e de forma confusa. Frederick Albert Cook e Robert Peary quiseram para si o título de pioneiro no Pólo Norte, aquele em abril de 1908, este, em abril de 1909. O problema é que nenhum deles produziu provas suficientes que atestassem suas versões. O Norte tinha dono, embora ninguém soubesse exatamente quem. Este evento, além de o fazer mudar de ideia, lhe ensinou a importância de ser o primeiro a dar a notícia pós-conquista.
O problema de contar a história primeiro é frequente, não só nas explorações. Por exemplo, se digo Lawrence da Arábia, à sua mente de imediato aparecem os olhinhos azuis de Peter O'Toole, interpretando T.E. Lawrence, um homem que tinha talento literário, com o qual deixou sua marca na História. Mas e o Coronel Leachmann, você conhece?
Scott quis ir ao Pólo Sul quando soube que isto representaria uma promoção na Marinha Real e, claro, prestígio, fama, riqueza. Nunca foi um "chamado", como é o caso do Amundsen. A comparação de ambos, todas as vezes em que tentei descrever, é um dos pontos mais ricos nesta narrativa.
Scott era o homem imperialista ocidental perfeito. Liderar uma equipe ao Extremo Sul era como ir à guerra. Ele nutria o sentimento de que o homem ocidental, com todo seu poder científico e tecnológico, venceria os obstáculos da jornada. Também tinha fé na força física dos heróis. Todo o aprendizado preparatório de Scott para a longa marcha ao Sul resumia-se a logística e força de vontade. Aspirava chegar ao Pólo Sul Geográfico a pé, tal era sua crença na tração humana (num ambiente completamente desconhecido). Ele seguiu conselhos de experientes, entre eles Nansen, mas apenas pela boa imagem que isso lhe traria e nem sempre os seguia de verdade. Ouvindo, por exemplo, avisos de que esta jornada feita por tração humana poderia ser mortal, ele, por, digamos, precaução, adotou pôneis, indiferente ao fato de serem herbívoros com destino à Antártica. Ele nunca se dedicou a aprender a esquiar nem a conduzir trenós. É comum que imperialistas vejam outras culturas como inferiores, quanto mais a natureza. Scott representava o imperialismo britânico em todas as suas cores, sobretudo as da prepotência.
Por outro lado, Amundsen aprendeu tudo o que fosse necessário para tal viagem. Aprendeu com quem sabe: os inuítes. Um conhecimento milenar ensinado de graça, em nome do respeito e da amizade. Amundsen viveu anos entre os inuítes. Se ele já sabia esquiar, aprendeu a construir iglus, a confeccionar vestimentas contra o frio, a como diferenciar texturas de gelo, a se conduzir no white out, a conduzir trenós com tração canina. Os cães esquimós, por sinal, são quase protagonistas nesta história. Ele comem de tudo, inclusive fezes, o que fazia dos acampamentos noruegueses na Antártica serem super higiênicos, e uns aos outros, quando um cão morria de estafa no caminho, servia de alimento aos demais.
A visão horizontal de Amundsen em relação aos povos e a natureza é uma das coisas que nós, hoje, temos tentado aprender. Lições de intolerância e o caos ambiental em que vivemos são frutos da mentalidade dos Scotts da história.
Amundsen e sua equipe chegaram ao Pólo Sul Geográfico em dezembro de 1911. Ele escreveu no seu diário: "Somos os primeiros." Voltaram todos com vida para contar o que viveram.
Scott e sua equipe chegaram um mês depois. Morreram todos no caminho de volta, congelados. Porém, tiveram a chance de contar sua versão dos fatos: Scott também mantinha um diário, e ele tinha talento como escritor.
A maneira como ambos narraram suas jornadas não podia ser mais distintas. Amundsen narra com o ardor de quem faz uma lista de compras. Scott, como se fosse o próprio Virgílio. De sua equipe, pouquíssimos sentiam o que podemos chamar de amizade. Era inevitável que, diante da morte coletiva e da pouca admiração de que gozava, Scott registrasse o heroísmo que o inspirou e, ilhados no gelo, narrasse os últimos momentos de vida de seus companheiros artisticamente. A fantasia que sempre o guiou se mostrava agora como o último recurso de redenção.
São vidas que merecem ser conhecidas porque enriqueceram a História com grandes lições de sacrifício e são representantes de um mundo que não existe mais, porque acabou o encanto. O trágico Scott será sempre um aviso sobre os perigos da temeridade. O Império Britânico o transformou em mártir, um homem apaixonadamente imprudente, que acreditava na inspiração como uma força da natureza: extraordinária, incontrolável. Uma visão diametralmente oposta da de Amundsen, a personificação do herói subestimado, que encara cada trecho da jornada com frieza e acredita na construção do caminho à medida que avança.
***
Só agora percebo que falei o que queria com talvez um décimo dos dados (nomes, eventos, datas) das versões anteriores. Este duelo é tão importante no meu universo particular que a sensação é a de que me confessei a estranhos. Acredito que leitura de Patriotic Gore, do Edmund Wilson, tenha influenciado um pouco a maneira como esse esboço biográfico e autorreflexivo fora escrito. Ao contrário das vezes anteriores, desta vez o texto saiu de uma só vez, sendo o esboço o próprio produto, afinal, não conseguia mais fazer várias versões da mesma coluna. Se eu acreditasse em inspiração como Scott e a maioria das pessoas acreditam, você teria lido esta coluna antes. Sou mais inclinado a acreditar em inspiração construída. Até porque, no caso de uma recriação como em parte esta foi, depois de absorver quatro pontos de vista distintos, dois deles sendo dos próprios protagonistas, escrever uma coluna pelo método mediúnico estava fora de questão. E estou protelando o ponto final. Ponto.
Para ir além
Guilherme Pontes Coelho
Brasília,
17/6/2009
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