Eu poderia começar dando uma fórmula para se escrever bem (ler bem), ou contar que nunca tenho "brancos" diante da tela vazia (o impasse vem depois). Seriam boas aberturas para um texto relativamente longo, com mais de 6 mil caracteres, e provavelmente fisgaria leitores no primeiro parágrafo, como aprendi a fazer em muitos anos de jornalismo. Assim seria até pouco tempo atrás, antes da tal crise dos 40 anos me pegar e eu perceber que não conseguia mais me realizar fazendo apenas o que já sabia fazer. Especialmente se tratando de algo tão vital, como o ato de escrever é para mim.
Por isso vou ousar fisgar você, leitor, aqui no segundo parágrafo. Para fazer o que estou aprendendo a fazer agora. Lançarei mão também de algo recente em minha vida de escrevinhadora: contar uma história pessoal. Ela começa com um telefonema de minha filha, às voltas com as primeiras redações na escola.
― Mãe, precisei escrever um texto hoje, mas fiquei concentrada demais, e quando vi era a única da classe que ainda não tinha acabado.
Era um preâmbulo. O fecho viria a seguir:
― No final da aula, a professora chamou a atenção da turma e leu a minha redação lá na frente. Disse que estava ótima, que eu posso ser uma escritora quando crescer.
Imediatamente meus olhos se encheram d'água. Sim, eu também tinha vivido aquela mesma cena, só que com 10 anos, e não com 9. O arrepio foi mais intenso pela forma como ela se descreveu naquele episódio, "concentrada demais", ainda sem conseguir identificar os sentimentos de engajamento e paixão absolutamente essenciais para um texto ficar "ótimo".
Na semana seguinte, em um evento na escola, a professora veio elogiar a habilidade de minha filha, e aproveitei para tirar uma dúvida: ela por acaso sabia que eu escrevia, que era jornalista? "Não!", se surpreendeu. "Então está no sangue!", emendou.
Só que eu não acredito nisso. Mas posso imaginar, sim, que eu tenha despertado nela alguma paixão pela palavra escrita ao ler em voz alta, empolgada que estava com a redescoberta da literatura infantil, ou quando me esmerei em encontrar significados para a expressão de um livro. "Mãe, o que é estar solitário?" É provável que numa dessas respostas ela tenha vislumbrado a aventura de se embrenhar no universo das letras, e nele identificar e expressar sentimentos recém-descobertos. "Já me senti solitária", é provável que tenha concluído. "Poderia ter escrito aquilo."
Não por acaso o impulso de escrever, e desnudar emoções, costuma acontecer com os primeiros versos da adolescência. Os poemas acabam no lixo (quase sempre o lugar certo para eles), e os adultos que continuam no ofício aprimoram seu estilo com a técnica e a sensibilidade de quem sabe amadurecer e ler bons livros. O problema é que o tal impulso primordial, a faísca que provoca todo o processo, muitas vezes é relegado a segundo plano, como se algo adolescente fosse. Nessas horas, uma boa crise da meia-idade (nova adolescência?) pode ajudar a colocar as coisas no lugar.
Percebi, na crise, que dominar a escrita é apenas o começo. A realização está em deixar a sua marca pessoal. E para se escrever algo realmente original é preciso estar com o coração inteiro. Mesmo diante de uma encomenda, tem-se que descobrir uma linha de pensamento própria, um raciocínio baseado na experiência assimilada ― e aí vale ler, pesquisar, trocar ideias no botequim com um amigo inteligente. Deve-se provocar o insight. No jornalismo, existe o grande privilégio de buscar (e conseguir) as melhores fontes, poder submeter suas ideias a quem já domina aquele assunto. Em compensação, haverá as amarras do texto jornalístico tradicional, mais impessoal ― que mesmo assim você poderá aprender a subverter, graças ao domínio da linguagem e das ideias.
Quando escrevo uma reportagem ou um perfil, daqueles em que me engajei de fato, raramente olho minhas anotações. Elas servem no máximo para alguma checagem final, porque o texto já está praticamente estruturado na minha cabeça. Existe um momento em que percebo: cheguei lá, a matéria existe. Tem uma essência, e eu acredito nela. Nessas alturas, fiz alguns links entre parágrafos mentalmente, e é provável que tenha pensado em um lead (abertura) no chuveiro ou correndo na esteira. É sentar e escrever, "concentrada demais", esquecida da vida, certa de que sairá da melhor forma possível (se o prazo não tiver ficado absurdamente curto).
Passei a observar esse processo interno de criação depois que um colega me perguntou se eu fazia uma estrutura prévia para escrever uma matéria com muitas fontes, já que tudo parecia tão encadeado. Contei que o texto saía pronto, mas talvez tenha passado a falsa impressão de algo fluido e fácil. Raramente é. Há momentos de sofrimento, de cansaço, em que é preciso dar uma parada, tomar um café, se possível continuar no dia seguinte. Um bom lead precisa dormir uma noite no computador para acordar tinindo. No caso dos livros que escrevi sob encomenda, todos jornalísticos, a imersão beirou a loucura na reta final, a ponto de eu sonhar com capítulos inteiros e descobrir soluções de madrugada.
Depois que saí da rotina de jornal diário ― quando momentos de privacidade e prazos mais flexíveis se tornaram possíveis ―, descobri alguns truques para aperfeiçoar a escrita. Ler em voz alta, por exemplo, pode ser de grande ajuda. Outra dica é aprender a valorizar o ato de reescrever. Escrever é reescrever. Escrever é reescrever. E a repetição não é minha, é do escritor Moacyr Scliar, no livro O Texto, ou: A Vida ― Uma trajetória literária. Aliás, o último conselho ― talvez o mais importante ― que sempre dou a estudantes de jornalismo é: leia bons livros. Um romance lapidado por um escritor de primeira, além de ótima companhia, é uma influência fundamental. E ajuda a compensar as leituras triviais do dia-a-dia, como a notícia apressada do jornal e o post coloquial do blog preferido.
Só não vale ficar intimidado pelos gênios, e se deixar bloquear. Já fui muito perseguida pelo terror de estar imitando meus autores preferidos, ou mesmo o escritor que no momento me deslumbrava com sua obra. Abandonei minhas pretensões literárias na adolescência por conta dessa autocrítica acentuada. Hoje percebo que essas influências são sempre benéficas, especialmente quando múltiplas. Desde que o mandamento número 1 seja preservado: escrever com o coração inteiro. Com engajamento, empolgação, paixão. Concentrada demais, mesmo que a turminha em volta jamais compreenda a intensidade de sua aventura.
Marta, obrigado pelo texto. Li e, entusiasmado, reli em voz alta para uma pessoa querida. Além de inspirador é emocionante. Digno da aventura da escrita.
Adorei seu texto, Marta. Apesar de não escrever profissionalmente (pelo menos não textos originais, só traduções - os textos originais ficam para o blog), me identifiquei com suas descrições; para escrever bem é preciso gostar de ler e de escrever, e mergulhar na tarefa com prazer. É mesmo uma aventura, ainda que solitária. E escrever é, mesmo, reescrever, assino embaixo. Grande abraço!
No meu caso, a tal crise da meia-idade (antecipada uns 5 anos) surgiu por eu ter me desviado dessa paixão e seguido outra carreira. Mas acostumada a cem tarefas em paralelo, estou de volta. E prestando muita atenção nas faíscas que chegam nos lugares mais inusitados. Acrescento mais uma dica: escrever é cortar. Parabéns pelo texto, Marta.
Oi, Marta, você transmite muito bem essa postura de escritora. Obviamente, não é pra menos, pois é uma profissional das melhores, sem perder o múnus de artesã na arte das letras. Guardada a devida proporção, comigo acontece, à altura da minha sexagenarice, o que nunca acontecia quando eu era um jovem escrevinhador contumaz e oferecido. Creio que o meu senso crítico se tornou mais aguçado. Outro poblema é que, por acúmulo natural de conhecimentos e informações, em decorrência do meu tempo cronológico e de meu interesse em criação, fica mais difícil escolher palavras corretas e dar corpo ao pensamento em letras que nem sei quem as lerá.