COLUNAS
Quarta-feira,
2/9/2009
Livro eletrônico?
Rafael Fernandes
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Acredito que, se acharem uma forma fácil, cômoda, confortável e barata para a leitura fora do papel, os livros como conhecemos virarão objetos para poucos ― como o jornais, revistas e CDs estão se tornando. Meu leitor eletrônico ideal traria as facilidades de compra através de um clique, sugestões certeiras de outros produtos, possibilidade de compartilhar trechos com quem eu quisesse e uma forma de selecionar, destacar e guardar as passagens que eu mais gostasse ― ligando-as a outros títulos. E que ainda fosse possível catalogar e acessar tudo de forma adequada. O problema é que isso ainda não apareceu. O livro continua sendo o objeto mais fácil, prático e simples de leitura, ainda que tenha problemas.
Muitos livros são muito grandes e difíceis de segurar com uma só ou até duas mãos; alguns são pesados e impraticáveis de ler deitado. Às vezes é necessário ler sentado numa mesa ― e mesmo assim ele insiste em ficar fechando. Tenho livros nos quais substituí o encadernamento normal por espirais. Se esteticamente perdeu um pouco de valor, ganhei na praticidade da leitura e no manuseio. Por isso facilitaria se eu pudesse ler em algo do tamanho de um papel e com peso mínimo, mudando as páginas com um toque, como parecem prometer alguns leitores digitais ― se não hoje, daqui alguns anos. Praticidade à parte, uma vantagem do livro está, claro, no seu charme.
O livro é um objeto que fascina e, como muitos, tenho a mania de cheirar todos os que adquiro. Tem, também, a questão de "ritual": faz com que tenhamos que levantar para pegá-lo, há o ato de folhear, o contato direto com as mãos dá uma sensação de "ligação"; assim, o momento da leitura se torna especial. Como acontece, por exemplo, com um vinil: o ato de olhar a capa, tirar o disco, levantar a tampa do tocador e sentar para ouvir uma bela obra musical. Essas ações nos colocam mais íntimos do que estamos fazendo, ficamos mais atentos ao que está acontecendo, sem pressa e podendo absorver mais a informação. Mas, repito, nada disso impede que os livros, como acontece com os outros produtos, possam ser substituídos em determinado momento se aparecer algo melhor.
Eu tenho uma espécie de "sonho" de ter meus bens culturais (música, vídeos, livros etc.) armazenados on-line, conectados por computador e celular (e, quem sabe, TV?), com fácil acesso e organização prática. Para que eu não precisasse, de forma alguma, guardar fisicamente, nem ter a possibilidade de perder os dados se deixasse só no meu HD. E que pudesse acessar de qualquer lugar e não apenas da minha casa. Colecionismo não me interessa, exceto por alguns itens em especial. E o depósito desses bens, num certo ponto, começa a virar um inferno, com problemas de capacidade, limpeza e organização ― pode se tornar uma coisa excessiva e impraticável. Sei que a maioria de leitores, ouvintes etc. vai achar uma blasfêmia, mas gostaria de me livrar de tudo isso se pudesse armazenar de modo mais simples e segura, sem precisar entulhar minha casa. Por isso me atrai, em princípio, a ideia de livro eletrônico.
Acho que não é possível comparar o Kindle, por exemplo, com o iPod. Nada tira o brilhantismo e a sacada da Apple no design, facilidade de uso e na associação ao iTunes. Mas é uma evolução do walkman/discman e até de tocadores portáteis de MP3 que existiam antes, mas não emplacaram. Ou seja, a adaptação de um produto conhecido e chancelado pelo público e o aproveitamento de um hábito já existente de ouvir música em qualquer lugar. Isso não ocorre com o livro, que há anos é o formato mais prático e já reconhecido de leitura. Outro ponto importante é que é perfeitamente possível ouvir música de fundo, fazendo outras milhares de coisas ao mesmo tempo, no computador ou andando na rua. Com o livro isso é bem mais difícil, embora não impossível de fazer junto com e-mail, MSN etc.
Os tocadores portáteis atuais vieram, também, do hábito de consumir o MP3 que, por sua vez, foi incentivado pela troca de arquivos, disparada via Napster e que hoje continua em programas diversos, de eMule a torrents. Essa distribuição desenfreada de músicas on-line já é fato há dez anos e continua forte. Ou seja, há todo um ambiente já criado e estabelecido de consumo e distribuição fluida de arquivos musicais. Isso ainda não aconteceu com os livros. Ainda que seja possível achá-los para download, não chega aos pés da oferta de música.
Outro motivo que dificulta a comparação com o mercado da música é que neste caso há constantes trocas de tecnologia. Se pensarmos só no último século, tivemos discos em diferentes formatos (cera, vinil), fita cassete, CD, DVD-áudio, Blu-ray, MP3, WMA, FLAC etc. Isso de certa forma acaba confundindo e até "enganado" o consumidor, que a cada X anos precisa trocar sua coleção e até seus aparelhos (e cada vez com um período menor de diferença). E não é de se estranhar que ele queira baixar de graça sem se preocupar em trocas futuras, já que um MP3 é de fácil armazenamento, não acumula pó e é eliminado com um comando simples. Já o livro continua firme e forte com o seu formato, não precisa de hardware nem software e, amarelamento e pó à parte, uma edição pode ser consumida por diversas gerações sem grandes problemas. Isso não ocorre com o 78 rpm do Lúcio Alves do seu avô.
A comparação com a música é muito mais óbvia em relação a jornais e revistas ― esses, sim, sofrem tanto quanto a indústria musical no quesito derrocada de um formato e perda de espaço para a internet. Tanto a música avulsa quanto a informação do dia a dia são engolidas por ela. Ambas são produtos "instantâneos", que podem ser consumidos em um período pequeno de tempo (pense numa música de três minutos e na leitura de um texto curto ou médio), são de fácil circulação (troca constante de arquivos e links de artigos) e tem oferta abundante em diferentes formas (torrents, sites, blogs, Twitter, Tumblr etc.). Nos dois casos, os formatos relativamente curtos aliados à fácil troca casam perfeitamente com a agilidade e dinamismo requeridos pela internet. Com o livro, isso ainda não aconteceu. E mais: a obrigatória e constante troca de tecnologias e formatos que um leitor eletrônico de livros exige pode ser um entrave para sua difusão em massa, ao menos inicialmente.
Imagino que o leitor eletrônico "dos meus sonhos" não acabaria com a ligação sentimental com boa parte dos livros, só substituiria algumas das minhas leituras. Em especial as de estudo, nas quais as anotações, consultas e ligações com outros títulos são necessárias e nem sempre práticas; nas quais o resultado em geral é uma confusão e um amontoado de livros. Mas da mesma forma que os celulares melhor desenvolvidos quando mais acessíveis tendem a substituir os MP3 players (afinal, para que carregar dois dispositivos semelhantes?), é preciso avaliar se o livro eletrônico vai "pegar" antes da chegada em massa da nova geração de notebooks (tablets, por exemplo). A possibilidade de acessar num único lugar todas as ferramentas do PC mais as facilidades de um leitor eletrônico é atrativa e não faria sentido ter os dois produtos de tamanhos e funções similares se puderem ser integrados em apenas um.
Nota do Autor
Agradeço ao Diogo Salles e ao LEM pelos "insights" sobre o assunto em nosso último encontro.
Rafael Fernandes
São Paulo,
2/9/2009
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