COLUNAS
Sexta-feira,
30/10/2009
Julie & Eu
Marta Barcellos
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Julie Powell era uma jovem promissora, mas sua carreira de escritora não havia decolado. Às vésperas de completar 30 anos, sua vida resume-se a um emprego detestável em uma repartição pública e um marido bonzinho, cujo trabalho obriga o casal a mudar-se para uma quitinete distante e barulhenta. Suas amigas de colégio, bem-sucedidas, e sua mãe tripudiam diante de seu inesperado fracasso. Nem tão inesperado: Julie parecia não ter grandes ambições na vida e nunca terminava o que começava, desperdiçando o seu talento.
Em meio à crise, Julie tem uma ideia: fazer um blog. Tudo a ver com o ano de 2002, quando a novidade despontava nos Estados Unidos. É aí que ela começa a fazer tudo certo, porque:
1) Escolhe fazer um blog temático (culinária);
2) O seu envolvimento com o tema é sincero; ela adora cozinhar e é fascinada pela autora do livro das receitas que pretende testar;
3) O blog envolve um grande desafio (fazer as 524 receitas do livro em 365 dias), permitindo que dificuldades e vitórias possam ser acompanhadas pelos leitores;
4) O desafio a obriga a postar diariamente;
5) Julie de fato é uma boa escritora.
Este não é o enredo de Julie & Julia, com estreia prevista para 27 de novembro nos cinemas brasileiros. Mas a história do blog está lá, dentro do filme dirigido por Nora Ephron que teve sessões lotadas no Festival de Cinema do Rio e na Mostra Internacional de São Paulo. O blog de Julie é a linha condutora de uma das duas trajetórias, baseadas em fatos reais, que correm paralelas no filme, onde quem brilha mesmo é a Julia do título, interpretada de forma arrebatadora por Meryl Streep. Para o expectador brasileiro, é importante saber que Julia Child foi uma celebridade na TV americana, onde tinha programas de culinária: o filme não chega lá e trata a informação como conhecida.
Mas voltando à Julie Powell, as peripécias da personagem interpretada por Amy Adams vão interessar especialmente aos blogueiros "não profissionais". A identificação acontece em diversas fases de sua aventura ao computador: o pouco caso dos amigos em relação ao blog, o questionamento (mas por que mesmo estou fazendo isso?), a euforia diante do primeiro comentário, a frustração em descobrir que o primeiro comentário é da mãe, o incômodo de pessoas próximas em ter sua privacidade exposta ("não ponha esta briga no blog!"), o entusiasmo diante da repercussão entre desconhecidos, o estranhamento de escrever com intimidade para desconhecidos, o reconhecimento público por um trabalho feito com dedicação e paixão.
A questão do reconhecimento repete um script bastante familiar para quem perambula pela blogosfera: o talento só é realmente validado, pela sociedade, quando o blogueiro tem o seu trabalho "descoberto" por uma "mídia de verdade". Em Julie&Julia, o exemplo é extremo: o reconhecimento vem de forma estrondosa depois de uma matéria no New York Times. Ou seja, a velha máxima de Henfil, da era pré-internet, de que algo só existe depois que "deu no New York Times" continuaria valendo.
A história de Julie ainda se repete por aí e inspira muita gente a entrar na blogosfera ― para sair dela tão logo a carreira tenha extrapolado os seus limites. Impossível não lembrar de escritores revelados em sites literários que precisaram do aval de uma grande editora para serem aceitos por seus pares. Muitos nem gostam de falar hoje dessas origens: costumam odiar o rótulo de "blogueiro" (muito amador?) associado à sua imagem.
Existem muitos motivos para blogar, e eu mesma já escrevi sobre isso, talvez para me convencer sobre o assunto em momentos de cansaço. Mas, depois de dois anos e meio, percebi que muitos dos que iniciaram um blog jurando diletantismo e despretensão no fundo acalentavam pelo menos um de dois sonhos: ser descoberto (como Julie foi) ou ganhar (algum) dinheiro.
A propalada morte dos blogs talvez tenha relação com o fim destes sonhos inconfessáveis. Quem era movido exclusivamente por eles acabou desistindo da empreitada. De minha parte, reconheço: sim, cheguei a sonhar com a tal monetização (o palavrão usado na Web para ganhar dinheiro com ela), mas logo percebi que isso não viria assim de lambuja. Eu precisaria transformar um projeto pessoal (escrever) em um comercial e empaquei numa das primeiras "regras", a de escolher um tema para o blog. Além do mais, minhas limitações com tecnologia praticamente eliminavam as minhas chances.
Em relação à aspiração de fama, o sonho é mais flexível. Se alguns esperam parar no NYT ou nos planos de uma grande editora, outros, como eu, ficam felizes por ser lidos ― e elogiados ― por alguém que considere admirável. O processo de "ser descoberto" também pode ser apenas interno, de autoconhecimento, como uma terapia. É aí que me encaixo novamente, chegada que sou ao assunto, como não negam meus muitos anos de psicanálise.
Por essas e outras, não tenho planos de abandonar tão cedo o hábito de blogar. A minha assiduidade hoje é menor, admito, mas isso é uma espécie de evolução para mim, pois um de meus objetivos profissionais é sair do ritmo de jornal diário, que era quase um vício. De resto, as possibilidades de um blog são tantas (e distintas das redes sociais), tão conectadas com os anseios humanos, que não acredito em absoluto em sua morte. O modismo passou? Já é retratado até em filme de época? Melhor assim. Que fiquem apenas os blogueiros para quem o sonho não acabou.
Nota do Editor
Marta Barcellos mantém o blog Espuminha de leite.
Marta Barcellos
Rio de Janeiro,
30/10/2009
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