COLUNAS
Quinta-feira,
12/11/2009
Palácio dos sabores 3/5
Elisa Andrade Buzzo
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Caminhar em Bordeaux é um prazer comparável ao de contemplar um cartão postal e sentir-se dentro dele, parte de sua história em movimento: à distância ― da margem direita do rio Garonne, cuja curva em formato de lua crescente originou a denominação Port de la Lune ― a fachada de pedra do cais com a ponte de Pierre é ainda a mesma das gravuras de Garmeray (1820) e Ozanne (1776), ou do magnífico quadro de Vernet, uma tempestade escurecendo seu grande céu, enquanto alguns raios de sol ultrapassam a barreira de nuvens. Entretanto, os navios à vela e as pequenas barcaças de transporte flutuando não existem mais, já que esse porto foi desativado, restando atualmente uma parada turística para transatlânticos, além do que a prefeitura transformou num jardim de quatro quilômetros. Adentrando em seu interior, Bordeaux parece a um tempo tenebrosa com as carrancas esculpidas nos baixos edifícios em pedra, recém-saída da idade das trevas, o que é um erro, pois sua arquitetura hoje é composta em grande parte por estes mesmos edifícios, hôtels (mansão, grande edifício de nobres ou estabelecimentos públicos) e échoppes (casa térrea característica da paisagem urbana de Bordeaux), que são dos séculos XVIII e XIX. Raras são as construções remanescentes da Idade Média: algumas igrejas e casas inscrustadas na cidade velha. Fala-se hoje de um despertar de la belle endormie (bela adormecida) com seu tecnológico bonde azul-metálico serpenteando do centro em direção ao rive droite e o intenso ravelement, ou limpeza, das belas fachadas enegrecidas pela poluição.
Nesta cidade não se arrepende da riqueza, acostuma-se com a mendicância, talvez apenas uma modalidade de vagabundagem francesa. Na Sainte-Catherine ― o eixo norte-sul do urbanismo romano de Burdigala, hoje a rua comercial mais longa da Europa, com 1,5 km ― Nico, o gato, estende sua latinha enquanto o dono com pinta de holandês roda a manivela da caixa de música. Entediado com a música enjoativa, vez ou outra o gato dorme entufado num cobertor azul-bebê, ou mastiga comida enlatada. Você aprende rapidamente a lógica das coisas e lhe dá umas moedas, enquanto acaricia sua cabecinha peluda. Em dia translúcido, Bordeaux, que se envolta por vidro fosse aquática, Nico daria patadas homéricas nos humanos-peixes... os hertoirs (maçanetas antigas em metal também usadas para bater nas portas da residências e prédios públicos; geralmente têm o formato de mão ou de peixe) sairiam nadando, joias saltariam dos cofres e virariam tesouros submarinos. Os inúmeros desenhos forjados em metal das sacadas derreteriam em linhas de algas rugosas. Coliseu da cidade galo-romana fundada em III a.C., o Palais Gallien voltaria aos seus dias de glória, onde o gato lutaria com o camundongo-Coralie. Gilles seria o imperador saudando molemente seus 22.000 cidadãos romanos.
Tento me lembrar com detalhes da ignorância diante do novo. As possibilidades foram lançadas quando o sino da porta ressoara e, em sua brancura imaculada, Gilles deixou com passos leves a cozinha, pronunciando um "Bonjour" tão fino quanto a campainha que havia estremececido. Talvez fosse a sola grossa de seus sapatos que desse a impressão de que ele flutuasse. Logo me encaminhou para uma mesa de canto e sumiu pela cozinha como uma sombra loira, mantendo na memória o meu pedido, "le canard" (o pato). Então pude ver por dentro aquele ambiente que, pela vitrine, me parecia uma sala de visitas tipicamente francesa ― aconchegante, levemente démodé. Poucas mesas guarnecidas com uma toalha branca, cobertas com outra cor de rosa e à prova d'água, poltronas com estofo amarelo de pontilhado marrom e uma cristaleira repleta de porcelanas kitsch. Poderia adivinhar que havia um gato, mas agora ele ficava na residência dos Boulet, já que era difícil limpar os pelos das poltronas. Também poderia adivinhar um piano marrom ornado com flores esverdeadas, e lá estava ele, próximo à caixa, já em desuso pois Coralie não tocava mais. Cada detalhe revestia-se de uma camada de motivos e consequências plausíveis. Pequenos informativos gratuitos, imagens do casal num verão em frente à entrada de madeira pintada de verde ― havia mesinhas com guarda-sol na calçada em frente ― outra de Gilles, pela vitrine com seu uniforme branco de chef, rindo gostosamente para o fotógrafo. Revejo a foto. Há uma pitada de discrição em sua boca entreaberta, mas o olhar se curva como uma lua, risonho.
Quando deixa a cozinha e nos oferece a graça de sua presença, investigo seus passos esvoaçantes, seus olhares furtivos. Depois, os sulcos da face branca descarnada ― onde sobressai uma pele branca e rígida, quase plástica, alguns pés de galinha atraiçoando a chegada aos 40. Qual pista devo seguir para afinal desvendá-lo? Da ossatura firme pendem os braços bem torneados e, alcançando o pescoço, o torso se bifurca em gola e botões. À minha questão infantil, "o que é courgette?" replica trazendo um exemplar do vegetal intrépido que resistiu ao golpe de sua faca. Se a brochette (espetinho) salpicada de especiarias contém variedades irreconhecíveis de peixe, ele abre um grande cardume à minha frente para todos explicar, pondo-se a folhear o Larousse Gastronomique. "Voilà", aponta com o dedo, que prenuncia a maciez de sua palma. Gilles fala vagarosamente, retira os pratos num riso e gesto largos. "Você dá aulas de culinária?", a resposta é categórica, "non", ainda que polida. Mesmo que tenha gosto em explicar algo quando lhe perguntam, percebe-se que aquela cozinha é seu território, puro, intocável, tal qual ele, indevassável. Aos clientes e admiradores de sua arte, resta apenas uma espiadela da mesa ou então um pouco mais de perto, indo à caixa para o pagamento. Beira à indiferença sua aparente ou verdadeira ausência diante das coisas. Viverá num mundo à parte, rente à beleza colorida de seus pratos ou enclausurado no ganha-pão da família? Que reação teria se eu brincasse com seus cabelos espetados de gel?
Nota do Editor
Leia também "Palácio dos sabores 1/5" e "Palácio dos sabores 2/5".
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo,
12/11/2009
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